APL 2882 Lenda da Torre da Princesa

Onde hoje existe a cidade de Bragança, existiu em tempos remotos a aldeia de Benquerença — nome que, por si só, é um símbolo de virtude e tradição.
Desde a antiga Brigantia — nome primitivo de Bragança — até aos tempos de hoje, quantas páginas dignas de evocação, quantos romances de amor e sacrifício, quantos documentos cheios de interesse e de emoção?!...
Bragança possui antiquíssimo castelo, e esse castelo tem a sua lenda, de gostoso sabor popular e onde História e ficção se misturam e confundem. Lenda que começa por reviver em nossa memória com os belos versos do inspirado poeta que foi Cristóvão Aires:

Dizem que nessa terra majestosa
Do castelo fronteiro, uma princesa
Viu correr longos dias de tristeza
Numa prisão estreita e silenciosa.

Decerto foi amada e foi formosa
E a roubou, com tão bárbara crueza,
As alegrias vãs da Natureza
Uma paixão fatal e desditosa!

Dirão: «Foi desgraçada!» E no entanto
Sabe Deus quanta paz, que doce encanto
A solidão guardava para ela...
Vive-se mais da íntima ventura
E ama-se bem melhor, com mais ternura,
Na sublime tristeza duma cela!

Ela, a princesa, era na realidade tão formosa como a cantou o poeta. Mas a fatalidade fizera com que perdesse muito cedo seus pais. Vivia na companhia de um tio, senhor do castelo de Bragança. Ainda criança, apaixonara-se por um jovem nobre e valoroso. Esse jovem, porém, não possuía fortuna suficiente para aspirar à mão da donzela. E assim, certa vez, ele procurou-a, falou-lhe do seu grande amor, jurou-lhe fidelidade eterna e declarou que ia partir de Bragança naquela mesma noite, para só voltar quando se sentisse digno de a ter por esposa.
A princesa juntou às dele as suas lágrimas e as suas juras. E ficou esperando. Esperando meses e meses… anos e anos…
 
Vendo a princesa recusar todas as propostas de casamento que lhe faziam nobres cavaleiros, seu tio, alarmado, mandou-a vir à sua presença.
Ela sentiu que a hora das explicações tinha soado. Apressou-se pois a ir ter com o tio, poderoso senhor daquelas redondezas. Mal a viu aproximar-se, serena, delicada, de olhos baixos, o castelão não se perdeu em preâmbulos:
— Minha sobrinha, insisto junto de vós neste ponto que me parece bem importante: deveis casar!
Com uma lentidão quase enervante a donzela foi erguendo os olhos até os fixar no rosto austero do tio. Depois, numa voz simples respondeu apenas:
— Impossível!
Ele deu um salto na cadeira.
— Impossível?... Como vos atreveis?
Imperturbável, ela continuou:
— É o mesmo que vos dizer uma vez mais... que o meu coração já não me pertence!
O castelão levou uma das mãos ao rosto. Como se atrevia aquela donzela de tão fraca aparência a resistir com tanta calma à sua soberana vontade? Talvez com um pouco de doçura fosse mais fácil convencê-la…
Respirou fundo, a plenos pulmões. Queria revestir-se de paciência e tentar adoçar a voz. Sorrindo, fez-lhe sinal de que se aproximasse, e pegando-lhe na mãozinha branca e um pouco trémula — única denunciante da sua aflitiva ansiedade — o senhor do castelo falou-lhe o mais brandamente possível:
— Escutai, minha sobrinha. Fui eu que tomei conta de vós quando ficastes órfã. Sou responsável pelo vosso futuro. Quero ver-vos casada, para vosso bem e alegria de quem tanto tem feito por vós. Porém, sempre que vos falo de qualquer bom partido, respondeis-me com as mesmas frases loucas! Pois não compreendeis que se trata unicamente duma puerilidade? Dizei-me com franqueza: há quanto tempo partiu esse tal vosso bem-amado?
Numa voz repassada de tristeza, a donzela esclareceu:
— O meu cavaleiro, Senhor, partiu há dez anos!... Tenho-os contado dia a dia... hora a hora...
Uma gargalhada cortou bruscamente aquele desabafo duma alma tão simples e boa. E, numa voz vibrante, o senhor do castelo ponderou:
— Dez anos! Dez anos… e ainda esperais que ele volte? Pobre tonta que vós sois, minha sobrinha! Em dez anos, um cavaleiro valente dá a volta ao mundo! E... ou morre… ou casa… e é feliz!
Sentindo as lágrimas subirem-lhe aos olhos, a princesinha retorquiu:
— Ele voltará! Assim mo jurou na hora da partida!
O senhor do castelo deixou-se vencer pela cólera e gritou:
— Calai-vos! Nem sabeis o que estais dizendo, senhora... Juras! Juras de crianças, nada mais! Quando ele partiu, tinha talvez uns dezasseis anos... e vós… vós ainda não tínheis feito dez!...
Num êxtase, a vozinha da princesa fez-se ouvir:
— A mim, parece-me que foi há uma eternidade!
Mas novo grito fê-la estremecer:
— Acabemos com isto! Sou velho demais para poder compartilhar das vossas pieguices... E já que o destino me entregou nas mãos o vosso futuro, procurarei cuidar dele o melhor que me é possível!
Então, soou frágil e angustiada a voz da princesa:
— Agradeço-vos na verdade, Senhor, tudo o que tendes feito por mim. Mas deixai-me viver sozinha, se quiserdes! Bastam-me os meus pensamentos, os meus sonhos, os meus devaneios pueris — como vós lhe chamais — para eu ser feliz!
A cólera mais uma vez encheu a sala onde tio e sobrinha se defrontavam. Quase rouco, ele gritou:
— Não! Não! Mil vezes não! Sois para todos os efeitos a minha herdeira natural. Tenho de cuidar de vós como se de uma filha se tratasse. Portanto, escutai: vou apresentar-vos um nobre cavaleiro meu amigo que se enamorou de vós... É ele o homem que vos convém para marido!
Aflita, a donzela tentou defender os interesses do seu coração:
— Mas, Senhor… eu não poderei nunca...
Um berro quebrou-lhe a frase:
— Não faleis! Não admito sequer a vossa recusa! Ide! Enxugai essas lágrimas que tentam estragar-vos o rosto e envergai o vosso melhor vestido! O cavaleiro que será vosso esposo não tardará aqui!
A princesa baixou a cabeça e retirou-se no mesmo passo tranquilo com que tinha vindo ao encontro do tio. Encerrou-se nos seus aposentos e, caindo aos pés do crucifixo que presidia no seu oratório, pediu, banhada em lágrimas:
— Meu Deus! Meu Deus, valei-me! Eu não quero casar com outro, senão com o noivo da minha meninice! Assim o jurei na hora da sua partida! E se ele morreu... então... que eu fique solteira para sempre — e serei uma das vossas servas mais humildes e mais fervorosas! Ó meu Divino Jesus, salvai-me! Salvai-me, por piedade!
As preces da jovem foram interrompidas subitamente pelos acordes marciais que davam a conhecer a chegada do nobre cavaleiro ao castelo de Bragança. Ela estremeceu. O momento supremo aproximava-se. Dentro em pouco viriam buscá-la para enfrentar o futuro. Era necessário encher-se de coragem. E essa coragem só poderia vir-lhe daquele rosto ensanguentado que representava Cristo na Cruz!
Agora, ela já não orava. Olhava apenas, sem atinar com um pensamento coerente, o Deus que se deixou matar pelos homens. E ficou esperando que a porta dos seus aposentos se abrisse e a aia a viesse buscar.

Entretanto, o nobre cavaleiro era recebido com todos os rigores do protocolo pelo senhor do castelo.
— Sede bem-vindo, senhor meu amigo. Minha sobrinha espera-vos.
Avançando com cortesia quase exagerada, o cavaleiro perguntou:
— Falastes com ela? Dissestes-lhe o que eu pretendo?
Embora evasivamente, o senhor do castelo afirmou:
— Disse, sim... Ela está um pouco desorientada...
O cavaleiro inquiriu, um tanto desconfiado:
— Desorientada porquê? Acaso o meu amor não lhe dará alegria?
— Oh, dom cavaleiro, que dizeis? Pelo contrário… ela julga-se infíma... para merecer a admiração de tão grande senhor!
O cavaleiro sorriu, mais sossegado.
— Oh, isso passará com o tempo! Quando ela compreender como eu a amo, sinceramente, desde o primeiro momento em que a vi... Quando ela souber como fiquei interessado pela sua figurinha grácil, que procurava esconder-se de mim... então...
O jovem não terminou a frase. A porta do fundo abriu-se para dar passagem a uma jovem pálida, de olhos baixos, caminhando serena, deliciosamente bela. Um tanto inquieto, o senhor do castelo informou o visitante:
— Senhor cavaleiro… eis minha sobrinha! 
O fidalgo encaminhou-se respeitosamente para ela.
— Permiti, Senhora, que se curve diante de vós e vos beije a mão o mais humilde e o mais sincero dos vossos admiradores!...
Ela poisou nele o seu límpido olhar. Aquele moço merecia a sua simpatia porque ia feri-lo no seu amor próprio e talvez mesmo no coração.
Mas o culpado de tudo era seu tio, cheio de orgulho e desejo de mando, mesmo quando esse mando feria os sentimentos de outrem.
O cavaleiro beijou a mãozinha trémula da jovem. E ao contacto daquele beijo dum estranho, ela ouviu-se de súbito a declarar.
— Senhor cavaleiro! Estive a pedir a Deus que me desse forças para vos contar toda a verdade.
Ele interrogou, surpreendido:
— A verdade? Mas qual verdade?
Sem baixar o olhar e num tom de absoluta sinceridade, ela elucidou-o:
— Ouvi, senhor, o que Deus me deu forças para vos dizer: amo outro cavaleiro, que não vós, ao qual estou ligada por um juramento do coração.
O jovem fez-se subitamente pálido e voltou-se para aquele que o mandara chamar.
— Senhor!... Foi para esta afronta que me convidastes a vir aqui?
Desconcertado, o senhor do castelo tentou compor o desaire provocado pela sobrinha.
— Perdoai! Ela não sabe o que diz! Está louca! Louca!...
Mas a voz da donzela ecoou subitamente firme:
— Louca ou não, Senhor meu tio, eu disse a verdade... Agora, fazei de mim o que quiserdes. E, se mo permitis, retiro-me para os meus aposentos.
E, tão solenemente como entrara, a donzela saiu da sala.
Colérico, o senhor do castelo de Bragança jurou ali mesmo vingar-se de sua sobrinha. Para isso, tentou e conseguiu convencer o cavaleiro de que nessa mesma noite a sobrinha lhe pediria perdão e lhe confessaria o seu amor. Habilmente, fez uma descrição inexacta do carácter da jovem, chamando-lhe estranha e caprichosa. Um tanto desconfiado, o cavaleiro ficou. O amor encontra sempre desculpa para as ofensas dos seus eleitos. Retirou-se para os aposentos que haviam sido preparados em sua honra, e aguardou.

Entretanto, o senhor do castelo arquitectara um plano diabólico. Esperou alvoroçadamente a noite. E quando esta chegou, envolveu-se num manto branco e, fingindo de fantasma, esgueirou-se por uma pequena porta que ia dar aos aposentos da donzela. Então, disfarçando a voz e falando através dum canudo largo, num tom cavo e profundo, chamou a sobrinha, mesmo sobre a cabeça da pobre menina:
— Senhora!... Senhora!...
Sobressaltada, a jovem levantou-se, exclamando:
— Meu Deus, valei-me!... Valei-me, Senhor! Quem chama por mim?... Quem chama?
A voz cava e profunda continuou:
— Escusais de gritar! Venho do Outro Mundo para vos dizer que sereis condenada para sempre, se não casardes com o dom cavaleiro que hoje pediu a vossa mão!
Arquejante, ela perguntou:
— Mas quem sois vós… para me falardes assim?
— Um fantasma... não importa quem! Uma alma penada... que vos aconselha a casardes já!...
Quase desfalecida, a jovem anuiu:
— Eu casarei... mas deixai-me!... Libertai-me deste tormento!
Ela ouviu ainda dizer:
— Jurais sobre o nome de Jesus Cristo?
A jovem ia responder. Mas nesse momento uma outra porta se abriu como por milagre, e então — prodígio dos prodígios! — apesar de ser noite plena, um raio de sol entrou por ali dentro, iluminando em cheio a figura mascarada e revelando a ardilosa mentira.
Acobardado, o senhor do castelo fugiu, deixando cair o manto que o ocultava. A princesa deu um grito. A brutalidade da certeza que adquirira quanto às intenções do tio punha-lhe o cérebro em alvoroço. Todavia, passados os primeiros instantes de desorientação, ela caiu de joelhos, juntando as mãos e erguendo os olhos ao céu num mudo e sincero agradecimento. Tinha-se operado um milagre. Um milagre estranho, indiscutível. O Cristo de rosto ensanguentado tinha-a ouvido. E ela estava salva e maravilhada!

E conta ainda a lenda que, desde então, o tio não mais a quis obrigar a quebrar o seu juramento. Aliás, a princesa passou a viver recolhida e sozinha numa torre bem alta e estreita, que ficou para sempre conhecida com o nome de Torre da Princesa, torre que ainda hoje existe.
Quanto às duas portas que tão grande relevo tiveram neste estranho caso, a tradição popular passou a chamar-lhes a Porta da Traição e a Porta do Sol, nomes que a lenda para sempre vinculou à história do castelo de Bragança.

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume IV, pp. 219-224
Place of collection
Bragança (Sé), BRAGANÇA, BRAGANÇA
Narrative
When
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography