APL 64 As bodas do cemiterio

A noite escura; alem a meio da serra divisa-se o castello de Tora, em terras de Val-de-Vez. A noite é escura, e essa massa enorme de pedra — negra e medonha!
 No alto da torre uma figura envolta em brancas roupagens grita pedindo soccorro, surge para logo se esconder, e de espaço a espaço ouvem-se lá dentro rumores afflictivos. Mas quem vê e ouve isto e apenas um cavalleiro que a passo vagaroso se dirige para o solar dos Valles. E certamente o vê e ouve na sua imaginação tresloucada; na torre não existe viv’alma, os homens-de-armas estão dormindo socegadamente, e só as atalaias vigiam em redor do Paço do Alcaide; nem a distancia permittiria distinguir
os ruidos!
 O cavalleiro bem depressa arreda da mente a pertinaz phantasia, que, sem embargo de sua provadissima coragem, lhe causava por vezes arrepios ao longo do rijo corpo, dominado por alma ainda de melhor tempera que o seu montante, que descabeçava o moiro mais robusto.
 Medo D. Soeiro?! o nobre D. Soeiro do Valle?! Oh! que Satanaz em pessoa se erguesse do chão, e ousasse ahi mesmo, de frente, medir valentias com o rico-homem de pendão e caldeira!...
 E lá ia seguindo para o castello, donde saíra havia quasi um anno, poucos dias depois da morte lhe haver roubado inesperadamente a melhor das esposas, que jazia ali proximo, por onde elle ia agora passar em noite escura e medonha.
 Como fôra a morte de D. Aldonça?
 Mas para que falar em tal? Se D. Aldonça era a melhor das esposas, tambem o alcaide se encerrára uma semana inteira, e fôra talvez por isso que ninguem lhe vira o pranto; não duvidemos porém que sentiria muito a sua desgraça, pois todos foram testemunhas de que durante dois annos amára apaixonadamente a formosa companheira.
 E certo que uma vez na sala de lavor a rica-dona percebêra que sua aia Dulce corára ao ver entrar D. Soeiro; é certo que Dulce deixára de viver no castello, e na manhã seguinte á expulsão D. Aldonça apparecêra morta em sua camara.
 Mas, se alguem potou a coincidencia, nem ousaria murmural-o. Quem havia em terras de Vai-de-Vez que podesse mostrar uma suspeita sequer de D. Soeiro, o alcaide?!

*

 E o corpo frio da castellã jazia ali nas trevas do cemiterio, junto ao qual ia passar o marido!
 Rapido o cavallo estacou; tinha na frente um vulto de mulher. Não se lhe via o rosto, mas que gentileza! Dir-se-ia semilhante á haste do lirio, que a mais leve aragem estremece.
 — Quem sois, mulher ou duende, que a deshoras seguis caminho tão só? — inquire o cavalleiro espantado.
 — Que vos importa meu nome, D. Soeiro do Valle, que vos importa quem sou?!

*

 As nuvens que velavam a lua afastaram-se, e nas campinas allumiadas pelo astro da noite apenas se via a sombra do castello rouqueiro. Parecia remorso escurecendo e manchando prazeres de culpado.
 De golpe o cavalleiro apeia-se.
 — Que voz tão argentina! — exclama — Deixai-me ver-vos bem.
 — Olhai — disse ella.
 — Santo Deus, que formosura!
 O rosto era comprido; em suas côres desmaiadas os olhos negros brilhavam com fulgor estranho.
 — Dizei-me, senhora minha, se vos posso acompanhar. A noite é erma e perigosa, vós fraca e gentil. Apoiai-vos a meu braço, visão encantadora!
 — Visão… — repete sorrindo a ignota.
 E, porventura como prova de realidade, a mão de neve tocou no hombro do rico-homem, que lha beijou galantemente.
 A moça fitou os olhos negros nos olhos do cavalleiro.
 — Á fé de quem sou —disse este— que nunca a minha alma se prendeu assim!
 — Esqueceis Dulce?! — interrogou ella, procurando disfarçar a turvação.
 — Esqueço tudo por uma hora só do vosso amor!
 — Uma hora é pouco; dou-me para a eternidade, ou não me dou.
 — A eternidade em chammas —vociferou o tresloucado,— e só o teu amor como orvalho que dá vida á flor crestada pelo tufão!
 — Cuidado, D. Soeiro, cuidado; que não sabeis o que é amor eterno! Viver a vida de outra alma que vive da nossa vida... unir os gosos e as penas... Os homens não comprehendem o que é esse esquecimento de nós mesmas, dando como refrigerio ao soffrimento alheio todo o premio que as nossas virtudes nos alcançarem... Tu não sabes o que é amor eterno!...
 E uma lagrima deslisou furtiva pelas faces muito pallidas da senhora da formosura.
 O alcaide levou a mão á fronte enrugada, para afugentar lembrança que o atormentaria; mas, voltando-lhe rapido o desejo, pretendeu abraçar a desconhecida, fazendo mil protestos de lealdade.
 Como se o busto se quebrára pela cintura delicada, o braço do cavalleiro passou no ar sem tocar a singular creatura!
 — Que ilusões me perturbam os sentidos! ... — pensou o atrevido, fazendo nova experiencia.
 Semilhando gazella espavorida, a requestada afastou-se, dizendo:
 — Davagar, devagar, senhor alcaide! Não me fio em vossas promessas; que a todas haveis faltado: se é vossa vontade que eu de vós seja para sempre, jurai-mo ali no cemiterio. Tendes animo? segui-me!
 E suas falas tinham tal harmonia, o olhar tamanha attracção, tão grande era o poder d’aquella mulher extraordinaria, que D. Soeiro foi caminhando a seu par, depois de haver prendido o cavallo a um tronco de urzes.
 Ia absorto em pensamentos varios, mas numa tão respeitosa compostura, que mais parecia romeiro seguindo devota peregrinação.
 Quando haviam entrado na jazida os mortos, ouviu-se ao longe na torre da ermida solarenga a primeira dás doze compassadas badaladas.
 Turvou-se o aspecto do valente alcaide, porque, ao sair do castello, determinára que nunca mais tangessem aquelle sino. Terriveis lembranças lhe avivava o lugubre som, que em noite horrivel fôra o primeiro dobre de uma finada.
 — No paço já repicam em signal de regosijo pelo vosso hymeneu — lembrou a desposada com leve ironia.
 Approximaram-se de um texo sombrio, uniram as mãos.
 — É gelo! — exclamou D. Soeiro, retirando a sua.
 — llludis-vos — contrariou ella, envolvendo o companheiro em olhar de ineffavel ternura, que serenou o animo do desvairado.— Estou quente, não sentis?
 Depressa o calor voltára á mão esculptural, que o enamorado guerreiro apertou nas suas.
 — São ossos; ouvi-lhes o ranger! — diz logo tranzido de pavor.
 — Creança, não vêdes que ainda outra vez vos enganastes?
 E mostrou-lhe as brancas mãos, que elle beijou envergonhado, e absorto na magica belleza da noiva singular, cujo rosto parecia agora banhado por essa luz suave que as estrellas mandam para alem do firmamento.
 Como devoto prostrando-se aos pés de imagem veneranda, o cavalleiro, ajoelhou.
 — Senhora — disse — ordenai; pertenço-vos.
 — Promettei ser-me fiel por toda a eternidade.
 — Juro — affirmou o alcaide;— em corpo e alma sou vosso, para todo o sempre só vosso!
 — Em corpo e alma?! Ha de ser graciosa a nossa união conjugal — tornou a mysteriosa; em gargalhada estranha, que desfez o mystico enleio.
 D. Soeiro ergueu-se, de subito. Aquelle timbre sobresaltava-o... Quem era aquella mulher?!
 Então a funerea desposada, abrindo os braços, enlaça o cavalleiro, que pretende fugir.
 — Arreda, arreda — grita o misero, assombrado da transformacão.
 Mas é um esqueleto que o prende e lhe segreda ao ouvido:
 — Não foges, tredo. Venho arrancar-te da vergonha. Corpo e alma cedeste; são meus para a eternidade. Os juramentos dos vivos atraiçoa-os a infamia; estes ficam sellados para sempre com o gelo das sepulturas!

 A ultima badalada da meia-noite pareceu confirmar ao longe para sempre, e o ecco foi repetindo pelas quebradas: sempre, sempre.
 Uma nuvem cerrou de todo a lua, deixando o valle immerso em densa escuridão.

 Na manhã seguinte os homens-de-armas do castello, ao verem chegar o cavallo de D. Soeiro, foram procurar seu amo, receando desgraça. Encontraram-no morto, estendido sobre a campa da mulher.
 — Como elle a amava! — disseram. E um dos mais velhos acrescentou de manso:
 — E vá a gente fazer juizos temerarios!

 As bodas do cemiterio não podem atraiçoar-se: duram sempre. Muitos seculos volveram, e comtudo ainda hoje em certos dias do anno, ao dar a ultima badalada da meia-noite em sino que ninguem tange, lá apparecem em redor do castello derrocado e ermo dois phantasmas abraçados.

 É um — figura de guerreiro: o outro de mulher, envolta em negras vestes, e seu rosto, que tem a alvura do jasmim, é banhado por essa luz suave que as estrellas mandam para alem do firmamento.

 As bodas do cemiterio não podem atraiçoar-se!

Source
BERTIANDOS, Conde de Lendas , Hospital Conde de Bertiandos, 1993 [1898] , p.29-38
Place of collection
PONTE DE LIMA, VIANA DO CASTELO
Collector
Conde de Bertiandos (M)
Narrative
When
19 Century, 90s
Belief
Some Scepticism
Classifications

Bibliography