APL 3341 Nabancia

Iria éra uma donzella casta e formosissima: geralmente estimada pela sua honestidade e pelo conjuncto de todas as virtudes que lhe davam realce á sua angelica formosura.
    De pequenina tinha hido para o convento onde estavam suas tias, para ser por ellas educada.
    Um nobre gôdo, chamado Britaldo, viu a santa menina e perdidamente se enamorou d’ella. Pediu-a em casamento, porem a donzella, que se tinha votado ao serviço de Deus, resistiu a todas as razões e promessas de Britaldo, o que ainda mais lhe inflamou o amor.
    Vendo que todas as diligencias eram baldadas, comprou um monge, chamado Remigio, mestre da santa, e o tornou cumplice do seu amor sacrilego.
    A desditosa menina foi victima de uma infame cilada, pois que o tal frade, ministrando-lhe certo narcotico, a entregou, adormecida, ao seu malvado seductor, que fugiu com ella para um sitio, proximo do Nabão; porem, apenas alli chegados, ou porque cessasse o efeito do narcotico, ou por vontade divina, a virgem acordou, desenganando Britaldo de que não podia ser sua esposa, visto que já o era de Jesus Christo.
    Vendo o seductor que nada conseguia da sua victima, a degolou, arremecando ao rio o cadaver truncado da sua victima, no dia 20 de outubro do anno 632. (outros dizem, 653.)
    A corrente do rio a levou ao Tejo, depondo-a em frente da cidade de Scalabis, ou Scalabicastro, onde os anjos lhe construiram um formosissimo tumulo de alabastro.
    Em breve se espalhou pela Lusitania a fama d’este martyrio e do milagre que lhe succedeu, e de toda a parte correu gente a ver o tumulo da santa virgem.
    Iria é proclamada santa e martyr, e Scalabis em breve muda o seu nome para o de Santa Irêne, que se corrompeu em Santarem.

1.ª  variante da lenda

    O tal frei Remigio, lambem se namorou de Santa Iria, e como não podesse conseguir os seus damnados fins, vingou-se, propinando á santa uma beberagem, que produzia uma inchação, similhante à gravidez. Britaldo, julgando Iria deshonrada, enfureceu-se por tal modo, que convidou um malvado por nome Banão, para a assassinar. Banão a degolou, precipitando-a depois no rio. Etc.

2.ª  variante.

    D. Britaldo, vendo perdidas todas as esperanças de desposar Iria, adoece de pezar, e chega ás portas da morte.
    Iria, sabendo isto, o foi visitar, dizendo-lhe que se não correspondia ao seu amor, não era porque desconhecesse que era digno d’elle; nem por ter o d’ella empregado em outro homem. Que por muito honrada, e feliz se daria em ser sua esposa, se isso não fosse um sacrilegio, visto ter já feito voto solemne de morrer freira.
    Tanta graça, tanta virtude e nobreza imprimia a virgem em suas palavras, que Britaldo ficou resignado, e melhorou.
    Tendo depois logar a propinação da tal bebida que fazia semelhar a gravidez, como fica dito na 1.ª variante, Britaldo accêso em ódio, angariou uns assassinos, que foram ter com Iria, a um logar solitario, onde costumava hir fazer as suas orações, e achando-a ajoelhada, a degolaram, despiram e lançaram o cadaver ao rio, etc.
    Na Historia de Santarem edificada, pelo padre (loyo) Ignacio da Piedade e Vasconcellos (1.ª parte, L. 2.º, cap. 21, pag. 365) accrescenta mais a esta segunda variante, o seguinte:
    Ainda depois de Britaldo julgar a santa virgem, culpada, lhe mandou por certa mulher, offerecer a sua mão, com o esquecimento do passado, e mandando-lhe varias e ricas joias, ameaçando-a com a morte, se não annuisse. Iria tudo desprezou.
    Britaldo, industriou um seu domestico, chamado Banam, para o assassinato, designando-lhe a hora em que a santa costumava orar, que era depois das matinas, e o sitio, que era uma lapa, ao fundo da cêrca do mosteiro, junto ao rio, em frente do sitio desde então até hoje chamado Pêgo de Santa Iria. etc.

Continúa a lenda

    Para que se não perdesse da memoria o logar do martyrio da santa – quando se reedificou e accrescentou o novo mosteiro, destinado então para a regra de Santa Clara (franciscana) alteando-se o terreno da lapa, fechou-se esta com uma abobada de pedra, cercada de assentos, e sobre o edificio, do lado do rio se collocou uma imagem de Santa Iria.
    A abobada está hoje reduzida a uma especie de cisterna, e por isso se lhe dá o nome de Pêgo de Santa Iria.
    Crêem as pessoas devotas, de Thomar e circumsferencias, que a agua do pêgo da Santa, cura todas as enfermidades, e quando em 1599, a peste devorou muita gente d’estes sitios, o remedio mais efficaz que julgavam para a cura dos atacados, era a agua d’este pêgo.
    É crença popular, que todas as vezes que se enchuga este pêgo, se acha o sangue de Santa Iria, tão fresco, como na hora em que foi derramado, e que as pedras que estão no fundo, teem todas manchas de sangue.
   
    Iria desapparecêra do mosteiro, sem se saber para onde. Correu a noticia de ter fugido com o auctor da sua supposta affronta. Os parentes ficaram tristissimos, sobre tudo, seu tio, o abbade Célio, que, recorrendo ás mais instantes e continuas orações, conseguiu que tudo lhe fosse revelado.
    Reuniu então o povo de Nabancia e lhe narrou o martyrio, com todas as suas circumstancias. Para se certificarem da verdade, se dirigiram todos os frades do mosteiro e toda a gente da cidade e sua comarca, ao logar da sepultura de Iria, e apenas chegados, as aguas do Tejo se abriram, deixando ver o angelico monumento, que foi aberto pelo abbade Célio, e todos viram então o corpo formosissimo da santa virgem, apenas envolto na tunica interior. (Porque Banão, lhe roubára os vestidos externos).
    Sendo evidenciada a todos, a innocencia da santa, quizeram leval-a para Nabancia, mas foram baldadas todas as diligencias que fizeram para tirar o cadaver do ataúde. Contentaram-se em levar algumas reliquias do cabello e da tunica. Collocada a tampa na sepultura, principiou a agua do Tejo a unir, pelo que todos se retiraram d’este logar e se foram para Nabancia.
    Remigio e Banão, temendo a vingança dos homens e o castigo de Deus, se foram a Roma pedir perdão dos seus monstruosos peccados, ao papa Honorio I, que lhes impoz pesadissimas penitencias, que elles, não só cumpriram humildemente, mas ainda fizeram outras, levados pelo seu profundo e sincero arrependimento.
    De Britaldo, dizem uns, que fôra curtir acerbas saudades, ainda mais entranhado amor, e cruciantes remorsos, para um deserto de Hespanha, onde mandára construir uma ermida a Santa Iria, da qual se fez erimitão, e alli terminou seus dias amargurados.
    Outros dizem que não se soube mais da Britaldo, e que não constava que elle désse satisfação a Deus nem ao mundo.
   
    Em 1295, estando a côrte em Santarem, ouviu Santa Isabel, mulher do rei D. Diniz, cantar a lenda de Santa Iria.
    Desejou ardentemente ver o sepulchro da Santa e, depois de muitos dias de oração e penitencia, se dirigiu com o rei e muitos senhores da côrte, ás praias do Tejo, dizendo que se hia divertir; mas chegando á beira do rio, ajoelhou, em profunda oração, finda a qual as aguas se separaram, como o tinham feito havia 663 annos, e todos viram com a maior admiração, o tumulo de alabastro, de tão formosa architectura, que só anjos o poderiam ter construido.
    Fez a santa rainha altas diligencias para o abrir, mas todas foram baldadas. D. Diniz, para o mesmo fim, mandou vir muitos pedreiros, porém as suas ferramentas pareciam de branda cêra e o tumulo de duro aço.
    Desistiu o rei do seu proposito, mas, para que senão perdesse da memoria o logar da sepultura, mandou a toda a pressa collocar alli um pedestal de pedra, o qual, apenas concluido, se tornaram a unir as aguas.
    Era este pedestal de tôsca alvenaria (por não haver tempo de ser construido com magnificencia, como o rei desejava), muitos annos existiu, pouco superior ao nivel da agua.
    Em 1644, a camara de Santarem, a pedido do povo, mandou guarnecer o pedestal, de cantaria lavrada, dando-lhe mais altura, collocando-se no remate a imagem de Santa Iria, feita de marmore, com 1m,32 de altura, defendida das chuvas por uma bandeja, ou cúpula, de metal lavrado, firmada sobre quatro columnas de ferro. N’esta nova pyramide se poz a seguinte inscripção:

HIC TAGUS IRENAE SACRO LEGIT OSSA SEPULCHRO QUAE UT VIRGO MARTYR FULGET IN ARCEPOLI HAEC PATRIAM LINQUENS NOSTRAE DAT CORPORE NOMEN, EFFIGIEM CUJUS ISTA GOLUMA TENET

    O romance (ou rimance) de Santa Iria, tambem tem algumas variantes, segundo as provincias em que é cantado. Para não fazer este artigo mais extenso, darei unicamente o da Beira-Baixa, por ser o que mais destôa da lenda: dando assim, ainda outra variante á poetica morte de Santa Iria, tão celebrada dos antigos vates lusitanos e portuguezes.

ROMANCE DE SANTA IRIA

Estando a coser na minha almofada,
Com agulha de ouro e dedal de prata;
Veiu o cavalleiro, pedindo pousada;
Se lh’a meu pae déra, estava bem dada.

Deu-lh’a minha mãe, que mui me custava,
Fui fazer a cama no meio da sala.
Era meia noite, a casa roubada;
De tres que nós eramos, só a mim levava.

Eram sele legoas, nem falla me dava,
Lá para as oito, é que perguntava:
– Lá na tua terra como te chamavam?
– Lá na minha terra era eu morgada.

Cá n’estas montanhas serei desgraçada,
– Por essa palavra serás degollada,
Ao pé de um penedo serás enterrada
Coberta de rama bem enramalhada.

No fim de sete annos, por alli passava,
E a todos que via elle perguntava:
¬– Dizei me, pastores, que guardaes o gado?
Que ermida é aquella que além branquejava?

– É de Santa Iria bemaventurada,
Que ao pé d’um penedo morreu degollada.
– Oh! minha Iria, meu amor primeiro,
Perdoa-me a morte, serei teu romeiro,

– Eu não te perdôo, ladrão carniceiro,
Que me degolaste que nem um carneiro,
– Veste-te d’azul, que é a côr do ceu
Se elle te perdoar, perdôo-te eu.

Source
PINHO LEAL, Augusto Soares d'Azevedo Barbosa de Portugal Antigo e Moderno , Livraria Editora Tavares Cardoso & Irmão, 2006 [1873] , p.Tomo VI, pp. 7-9
Place of collection
TOMAR, SANTARÉM
Narrative
When
7 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography