APL 2864 Lenda da Fundação do Convento de Mafra

… Pois conta a História de Portugal que el-rei D. João V, nos seus primeiros tempos de casado, vivia em profunda e estranha melancolia.
Certo dia, a rainha sua esposa foi encontrá-lo na varanda larga do palácio, embrenhado em pensamentos que lhe ensombravam o rosto. E perguntou, a meia voz:
— Senhor, que mágoa sofreis em silêncio?
Surpreendido, el-rei tentou disfarçar.
— Negócios de Estado, Senhora...
Mas logo ela contrapôs, num meio sorriso de humildade:
— Não me deveis enganar... Lembrai-vos de que sou vossa esposa...
El-rei suspirou. E retorquiu com voz mal segura:
— E não vos engano. Disse-vos e repito-vos: são negócios de Estado.
Houve um breve silêncio. Depois, a rainha insistiu:
— Perdoai, Senhor... Mas a névoa que vejo no vosso olhar faz-me crer que não se trata de política...
D. João V olhou-a e reconheceu, esboçando um leve sorriso:
— Sois perspicaz. Podeis ler sempre assim no meu íntimo?
Foi a vez do semblante da rainha se abrir num sorriso.
— Penso que sim. Porque, afinal, Senhor, os vossos cuidados devem ser gémeos dos meus.
— Que cuidais então que seja o que me entristece?
A pergunta saiu num grito de alma. E a resposta não foi menos sincera:
— Digo-vos, Senhor, que é a falta de um filho que vos traz abatido e taciturno. E tendes razão para isso.
Calou-se a rainha por instantes a ganhar coragem para continuar.
— Sim, tendes razão... Talvez a mim me caiba a culpa maior de tudo isso!
Mas o rei logo protestou:
— Não!... Pelo amor de Deus, não penseis tal!... A culpa é minha e só minha!  
Ergueu os olhos ao céu, numa interrogação e numa súplica.
— Não sei porque razão Deus me castiga assim!... Um rei sem filhos é uma árvore sem frutos!
Ambos se entreolharam em silêncio. Foi ela a primeira a falar.
— Que havemos nós de fazer, Real Senhor?
D. João V abanou a cabeça, lentamente. Abatido. Desanimado.
— Bem me podeis perguntar, Senhora, que não vos sei responder. Só Deus nos poderá indicar o caminho!
E a rainha tornou:
— Pois vou pedir a Deus, mais uma vez, que nos conceda tal mercê!

A rainha foi recolher-se na capela do paço, a rezar fervorosamente as suas orações. Todas com a mesma intenção. Todas elas rogando o mesmo favor. E foi então — diz a lenda — que ela escutou junto de si uma voz velada e lenta, dizendo:
— Se vós quiserdes, Senhora, el-rei poderá ter um filho.
Emocionada, trémula, a rainha murmurou:
— Meu Deus, será possível? Será a Vossa própria Voz que eu escuto, meu Deus?...
E logo alguém rectificou, num tom de humilde reverência:
— Não é a voz de Deus, não!... É somente a voz de um dos vossos fiéis servidores.
A rainha voltou-se, surpresa.
— Ah, sois vós Frei António!... Imaginai que cheguei a supor tratar-se de um milagre... que Deus descia até mim para me aconselhar...
O frade inclinou-se suavemente. E suavemente ajuntou:
— Senhora, às vezes Deus fala pela boca dos seus sacerdotes.
A rainha olhou o frade. Intrigada. Confusa.
— Que pretendeis dizer com isso?
Frei António de São José limitou-se a sorrir, antes de responder:
— O mesmo que vos disse há pouco.
E acentuando bem as palavras, repetiu:
— Se vós quiserdes, el-rei poderá ter um filho.
A rainha ergueu-se num impulso.
— Mas eu quero, eu quero, com todas as veras do meu coração!
E acrescentou baixinho, como quem segreda, sufocada pela ansiedade:
— Que devo fazer? Dizei-me e assim farei!
No mesmo tom de voz, o frade esclareceu pausadamente.
— É bem simples, Senhora... Basta que el-rei faça a Nosso Senhor Jesus Cristo a promessa de construir um convento em Mafra, se Deus lhe fizer mercê de ter um filho varão.
E o frade concluiu, com voz segura e profética:
— E estou certo de que o fará!
A rainha não escondeu a sua perplexidade.
— Só isso, Frei António de São José? Só isso, nada mais?
— Só isso e nada mais, Real Senhora.
Ela abriu-se num sorriso. E declarou com decisão:
— Pois hoje mesmo direi a el-rei que faça essa promessa!

De facto, conforme diz a lenda, nessa mesma noite a rainha falou com D. João V acerca de tão extraordinário caso.
Ele não hesitou nem ao de leve.
— Oh, Senhora, estou pronto a fazer a promessa... Construirei em Mafra o mais belo e sumptuoso convento de Portugal!  
E erguendo-se, e abrindo os braços, como que a desenhar mais largamente o seu próprio desejo, acentuou:
— Um convento que, em grandiosidade, nada fique a dever aos conventos de Roma!
Quase chorando de alegria, a rainha agarrou-lhe as mãos.
— Que alegria me dais, Real Senhor!... Sinto-me reanimada com a vossa promessa e com as palavras de Frei António de São José!... Que Deus vos oiça!... Volto a encher-me de esperança!
Enlaçando-a meigamente, el-rei confidenciou:
— Amanhã mesmo, ao romper da alva, falarei a Frei António de S. José. Conheço-o bem. É um dos mais inteligentes frades da Arrábida. Não me custa a acreditar que a sua fé consiga um milagre!

Na realidade, mal surgiram os primeiros alvores da manhã, já el-rei D. João V se encontrava a pé, depois de uma noite agitada pelos mais complexos pensamentos.
Logo mandou chamar Frei António de S. José, que não se fez esperar.
— Vossa Majestade dá licença?
— Entrai, entrai, Frei António!
E convidando-o a sentar-se, D. João V entrou imediatamente no assunto.
— Sua Majestade a rainha contou-me o que vós lhe dissestes... E eu estou pronto a fazer a promessa!
O rosto de Frei António não escondeu a satisfação que lhe inundava a alma.
— Decerto muita alegria dais a Deus neste momento, Real Senhor!
D. João também não escondeu os obstáculos que levantava a promessa feita.
— Sei que vou contra a vontade de muitos, pois deveis recordar que a ideia de construir um convento em Mafra já foi posta de parte várias vezes, em virtude de o tesouro estar demasiadamente onerado com outros conventos...
E erguendo a voz um pouco:
— Lembrais-vos do último despacho do desembargador do Paço, Frei António?
O frade concordou:
— Lembro-me, sim, Real Senhor, e por isso mesmo mais me alegro…
Inclinou-se para o monarca, e a sua voz ganhou mais força, maior convicção.
— Ides contra a vontade de muitos... mas ides a favor da vontade de Deus!
D João V também se ergueu, dando por finda a breve conferência.
— Que assim seja, Frei António. Hoje mesmo deveis acompanhar-nos, a mim e à rainha, até Mafra, para escolhermos o terreno destinado ao convento.
 
E nesse mesmo dia, confor-me reza a tradição, em Mafra, olhando o céu, el-rei D. João V, tendo a rainha e Frei António como testemunhas, fez a sua promessa sagrada:
— Senhor meu Deus Todo Poderoso!... A Vós suplico a mercê de fazerdes com que me nasça um filho, que possa continuar a dinastia de Portugal! E eu Vos prometo, Senhor meu Deus, solenemente, que no mesmo dia em que meu filho nascer aqui em Mafra se iniciará a construção do mais grandioso convento de Portugal!
Frei António de São José limitou-se a rematar com fervor.
— Ámen!
 
Desde esse dia, o rei e a rainha de Portugal viveram em constante sobressalto. Até que, certa manhã, a rainha deu a D. João a grande notícia.
— Senhor… Senhor meu rei e meu esposo… Sinto já o nosso filho a palpitar dentro de mim!
No auge da felicidade, D João V ergueu os olhos ao céu e exclamou:
— Louvado seja Deus!
 
Nove meses depois, bem contados, na expressão pitoresca do povo, a rainha de Portugal teve a sua hora pequenina. E nessa hora nasceu um principezinho que encheu de encantamento o coração de seu pai.
— Deus seja louvado!... Graças, graças, Senhor! Já tenho um filho!... E obrigado tambem a vós, Frei António de S. José!
Humilde e simples, o frade replicou:
    — Nada tendes que me agradecer, Senhor. Apenas revigorei a vossa fé perdida. Deus, sim, Deus é que merece todas as vossas graças, pois que vos escutou.
E, sorrindo, ajuntou intencionalmente:
— Agora, resta-vos cumprir a promessa que fizestes...
D. João V sorriu também.
— Assim farei, Frei António!... E mais vos digo. Já combinei com a rainha: em sinal de gratidão por vós, Frei António de S. José, o príncipe de Portugal receberá o nome de José!

Cumprindo escrupulosamente a sua promessa — tal com nos garantem a História e a Lenda, entrelaçadas na tradição do povo — nesse mesmo dia, enquanto Portugal inteiro festejava ruidosamente o nascimento do herdeiro do trono, também em Mafra, por ordem de el-rei, se iniciavam com entusiasmo as obras para a construção do grandioso convento.

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume IV, pp. 67-71
Place of collection
Mafra, MAFRA, LISBOA
Narrative
When
18 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography