APL 2869 Lenda do Cativo de Belmonte

Não é a lenda da vila de Belmonte que vou contar, embora esta povoação muito antiga tenha merecido o especial carinho da tradição. A lenda que vai seguir-se é a de um homem que em tempos muito remotos saiu de Belmonte, e para ali voltou mercê de um milagre. A atestá-lo — diz a lenda — ficou a capela de Nossa Senhora da Esperança.

Chamava-se Manuel. Foi o único nome que a tradição guardou. Nascido em Belmonte, combatera os Muçulmanos como ardor do cristão valente. Porém, teve pouca sorte numa das batalhas. A sua hoste foi desbaratada. Sem poder passar para as fileiras dos seus compatriotas, teve de esconder-se, e caminhou direito à costa, ocultando-se quanto podia. Mas foi descoberto por um bando que o entregou a um barco pirata, e neste, arrebanhado a outros prisioneiros, foi levado como cativo para Argel. Aí o deixaram servindo como escravo. Trabalhava para os Mouros dia e noite. Mas tomou esse martírio como penitência dos seus pecados, e trabalhava sem revolta, sem queixumes, oferecendo a Deus e à Virgem todas as suas dores.
Contudo, as saudades da terra, da mulher e dos filhos não o deixavam, trazendo-o constantemente atormentado. Para tentar esmagar no peito essa lembrança, entregava-se às mais penosas tarefas. E orava, orava sem cessar, rogando a possibilidade de haver um fim para a sua desdita, quando Deus o entendesse. De noite ficava a magicar no momento em que voltaria a abraçar os seus entes queridos. E os meses iam passando, e com eles os anos.
Certo dia, um dos mouros que comandava o troço dos escravos chamou-o de parte. Manuel mostrou-se intrigado.
— Que queres de mim?
— Fazer-te uma pergunta. Mas responde a verdade, se não queres ser castigado.
— Responderei, decerto.
— Que significa na tua língua a palavra que andas sempre a dizer?
— Eu?
— Sim, tu! Trabalhas com o olhar distante.
— Mas faço o meu trabalho.
— E dizes, de vez em quando, uma certa palavra.
— Digo às vezes muitas palavras, quando rezo ao meu Deus.
— Não, não é reza! Parece um nome. Será o de tua mulher?
— Como queres que te responda, se não me repetes a palavra a que te referes?
O mouro mostrou-se impaciente.
— Sei lá! Qualquer coisa parecida com esperança!
Manuel sorriu.
— É essa mesma. Pronunciaste-a muito bem.
— É nome de mulher?
— Pode ser. Mas tem para mim outro significado.
— Qual?
Manuel não respondeu logo, O outro insistiu:
— Que significa esperança?
O cativo encolheu os ombros.
— Ora! Significa que acalento o desejo de poder voltar à minha terra.
O mouro gargalhou:
— Estás louco! Terias de atravessar o mar a nado! E, além disso... não poderás fugir daqui!
Como Manuel continuasse a sorrir, quase feliz, o mouro enervou-se. Gritou:
— Porque falas em esperança?
A resposta veio rápida:
— Porque acredito no meu Deus e na bondade de Sua Mãe, a Virgem Maria.
Troçou o mouro:
— Pede então a essa Virgem que te leve daqui, para eu ver se ela é capaz dessa façanha!
Sem dar mostras de enervamento, Manuel declarou:
— É o que faço, de hora a hora, mesmo durante o trabalho. Rezo à minha Virgem da Esperança!
O mouro deu com a adaga numa estaca de madeira, partindo-a em duas.
— És louco, e como louco te tratarei doravante! Anda, vai para o teu trabalho!
Sem mostrar impaciência, Manuel voltou ao trabalho do campo. Sem o perder de vista, o mouro ficou vigilante.
Desde esse dia, a vida tornou-se ainda mais dura para o pobre cativo. Deram-lhe as tarefas mais pesadas, diminuíram-lhe os alimentos e foi alvo da mais severa vigilância. De tal forma que à noite só o deixavam dormir dentro de uma arca e amarrado por grossas cadeias. Mesmo assim, um mouro ficava de sentinela.
De tão aflitiva situação apiedou-se a Virgem Maria. E na véspera do Dia de Páscoa, quando Manuel dormia na arca, deliberou ajudá-lo. Então, com grande espanto, o mouro que vigiava o cativo ouviu falar o cristão. Dizia ele palavras estranhas, que mal se percebiam. Respondia a alguém com quem dialogava. Tudo se passara assim: o cativo ouvira chamar por ele...
— Acorda, Manuel!
— Quem me chama?
— Sou eu, a Senhora da Esperança.
O cristão ficou perplexo. Redarguiu:
— Senhora, devo estar sonhando! Mas muito vos agradeço a Vossa visita, mesmo em sonhos. Ameniza o meu sofrimento.
— Pois venho participar-te que o teu penar acabou.
— Como, Senhora, se tenho tantas saudades da minha terra e dos meus?
— Vou levar-te a Belmonte!
— Ides levar-me a Belmonte?... Quereis dizer que morri?... Que já sou um espírito, e por isso posso voar sobre os mares?...
— Não, ainda não morreste. Mereces receber por mais algum tempo o carinho dos teus. Vais atravessar os mares dentro dessa arca!
Manuel teve um risinho nervoso.
— Senhora da Esperança! Como vão todos ficar espantados, os de cá e os de lá!...
A Senhora já não lhe respondeu. A arca levantara-se do chão, arrombara a porta e continuava a subir no espaço. Os mouros gritavam, alarmados. Chamaram o chefe dos escravos e disseram-lhe:
— A arca onde encerrámos o cristão ergueu-se no ar e sumiu-se para as bandas do mar!
O mouro olhou-os como se estivessem todos loucos.
— Que estais dizendo?
O que estava de guarda à arca adiantou-se.
— Chefe! Ouvi o cristão falar dentro da arca, como se estivesse alguém ao pé dele. Parecia contente. Dizia coisas estranhas, que mal percebi!
O chefe franziu as sobrancelhas e perguntou:
— Lembras-te de algumas das palavras que ele proferiu?
— Poucas!
— Di-las!
— O cristão falou em saudades… em minha terra… em voar sobre os mares… Pareceu-me ouvir-lhe dizer: senhora… e esperança…
O chefe sobressaltou-se.
— Falou em Senhora da Esperança?
— Sim.
— Tens a certeza?
— Tenho.
O mouro mordeu os lábios. Fez-se um silêncio. Por fim, olhando para os lados do mar, sentenciou:
— Não mais o teremos aqui! Voltou para a sua terra!
— Mas como?
— Foi a tal Senhora da Esperança!
— Que senhora?
Cerrando os dentes, o mouro voltou as costas, deixando os outros a olhá-lo, boquiabertos…
 
Sábado de Aleluia. O Sol rompera radioso nessa manhã. Os sinos tocavam alegremente. Corriam as gentes de Belmonte e arredores para a ermida. De súbito, os que estavam à porta da capelinha arregalaram os olhos. Acabavam de ver pousar no chão, vinda do ar, uma pesada arca, mas que pousara leve como andorinha. E de dentro da arca saiu aquele que todos julgavam já morto pelos Muçulmanos!
O alarido misturou-se com o cantar alegre dos sinos. O júbilo causado pela inesperada e milagrosa aparição de Manuel foi enorme. A mulher e os filhos abraçavam agora aquele que tantas vezes haviam chorado. Manuel contou entre lágrimas a sua extraordinária aventura. E então, ali mesmo, o povo determinou levantar uma outra ermida à Senhora da Esperança, em acção de graças pela Sua Bondade para com um filho da povoação de Belmonte. Cantaram-se mais fortes as aleluias da Páscoa. Ergueram-se hinos de louvor ao Céu. E a ermidinha à Senhora da Esperança não tardou em ser erguida também.

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume IV, pp. 111-114
Place of collection
Belmonte, BELMONTE, CASTELO BRANCO
Narrative
When
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography