APL 238 Lenda da imagem do senhor jesus

Na igreja de Santa Marinha, desde há muitos anos, existe uma rica imagem do Senhor Jesus.
 A sua origem é desconhecida, ignorando-se donde veio e não se sabendo mesmo quem a fez.
 O que se sabe é que teve no passado uma extraordinária devoção por parte dos paroquianos e até mesmo dos povos da cidade e de outras regiões.
 A imagem tem 8 palmos de alto e é uma bela escultura.
 O Senhor está crucificado num madeiro, de cabeça pendente sobre o peito, colocado em tribuna própria.
 Tem ao seu serviço uma Confraria que, em tempos idos, gozou de grande prestígio mas, actualmente, mercê de circunstâncias que não importa considerar, tem apenas uma espécie de razão histórica.
 Com essa imagem saía todos os anos da igreja de Santa Marinha, no dia 3 de Maio, uma procissão imponentíssima que deixou desde há muito de se organizar.
Essa procissão apresentava requintes de figuração mas, nela, misturavam-se motivos religiosos com outros de inspiração nitidamente pagã.
 À volta da imagem corriam na tradição diversas lendas a propósito do seu aparecimento, algumas delas sem qualquer elemento de verosimilhança.
 Dentre as que se contavam circulava uma que vamos narrar a seguir.
 Diz-se que, numa época de peste, que foi assinalada por uma invasão de mosquitos, fora revelado a uma freira de Corpus Christi, em seus sonhos ou êxtases de clausura, que existia uma imagem de Cristo escondida entre um juncal, nos domínios do Convento.
 A religiosa estava doente, contagiada pela peste, e sugeria que buscassem a imagem para libertarem o povoado dessa praga, levando-a em procissão quando a encontrassem.
 Procurada a Cruz do milagre foi ela descoberta e por muitos anos veio a ter a devoção dos fiéis.
 Conforme a lembrança da dona de Corpus Christi foi levada em triunfo pelas ruas da vila, extinguindo-se a seguir o flagelo da peste.
 Assim, por esta crença popular, explicada fica a origem da escultura que, no dizer de alguns, já existia no ano de 1420, embora também conste segundo outros — que a imagem fora trazida à terra por anjos da corte celestial.
 Entretanto, há quem entenda que a alusão não oferece foros de credibilidade.
 Sousa Reis, por exemplo, é de parecer que a escultura devia ter vindo do convento de emparedadas que existiu no Monte de S. Nicolau ou da Meijoeira (hoje Serra do Pilar).
 E refere que esse convento de emparedadas fora fundado em 1140 por D. Pedro Ribaldis, bispo do Porto, nos primeiros tempos do seu Governo, acrescentando que o crucifixo se encontrara junto à ermida de S. Nicolau, no alto do monte e do lado de Quebrantões.
 Esclarece ainda que esse mosteiro já existia em 1300, quando o bispo D. Sancho Peres — ao fazer seu testamento em 17 de Janeiro de 1338— deixara às donas inclusas ou emparedadas a quantia de 20 libras — item mulieribus de portu XX libras.
 Ao extinguir-se o referido Convento por falta de freiras que o frequentassem existiam nele mais imagens de santos do que aquelas a que se refere D. Baltazar Limpo, bispo do Porto, na carta de 17 de Junho de 1539 — um Santo Cristo e as imagens de S. Nicolau e S. Bartolomeu.
 Tais imagens foram recolhidas na Capela do Senhor de Além depois de uma luzida procissão fluvial levada a cabo até Massarelos.
 Foram os cónegos regrantes de Grijó que pediram a remoção da ermida quando vieram para o monte de S. Nicolau edificar o seu novo mosteiro.
 E foram tais cónegos que fizeram a reconstrução da dita capela, sobre um penedo sobranceiro ao rio, conhecida pela do Senhor de Além.
 É possível e de admitir que a imagem do Senhor Jesus fosse recolhida em convento próximo, corno era o das religiosas de S. Domingos.
 Deve assinalar-se que as freiras de Corpus Christi tinham o direito — na procissão de 3 de Maio — de ver a imagem conduzida ao terreiro do seu convento.
 Um ano aconteceu que — de propósito ou por esquecimento — a procissão não passou no convento, nem a imagem entrou no terreiro, ficando as freiras de tal modo emocionadas e ofendidas que fizeram a ameaça de sair à rua de cruz alçada, como acontecia quando se juntavam em corporação.
 Sabe-se por outro lado que a primeira procissão do Senhor Jesus saiu precisamente do convento das donas ficando depois recolhida na igreja de Santa Marinha.
 Assim, tudo inculca que a imagem viera de lá. Porém, poderá a verdade estar em conformidade com a tradição pois se diz que a imagem ao ser encontrada onde a freira a situava, foi levada em procissão e recolhida na igreja referida.
 Ainda mesmo que venha a tomar-se como exacta a versão com base na remoção da capela de S. Nicolau a notícia popular continua de pé e pode, portanto, corresponder a um facto certo.
 Afinal, tudo dependerá de se encontrar ou não documentação esclarecedora.
Doutro modo, tudo continuará na obscuridade da lenda como sucede com a capela de S. Marcos que se diz ter sido matriz da freguesia, mas cuja localização se ignora.

Source
VALLE, Carlos Revista de Etnografia 26, Tradições Populares de Vila Nova de Gaia - Narrações Lendárias , Junta Distrital do Porto, 1969 , p.426-428
Place of collection
Vila Nova De Gaia (Santa Marinha), VILA NOVA DE GAIA, PORTO
Narrative
When
20 Century, 60s
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography