APL 2828 Lenda das Mouras da Cisterna

A lenda que vou contar refere-se às mouras encantadas no Castelo de Sesimbra. Mouras cruéis, tirânicas, malfazejas, embora de extraordinária beleza. O povo do lugar, quando fala delas, tem sempre um olhar distante e apreensivo. E o caso explica-se. Segundo eles, muitos dos mais honrados e belos pescadores de Sesimbra têm perecido por se deixarem embeiçar pelas falinhas mansas dessas mulheres cujas almas não são de Deus e cujo contacto faz perder o Céu! O mesmo não acontece quando ouvimos o povo algarvio. Lá, as mouras são todas lindas e boas. Todas sofrem de mal de amor e morrem pelo seu cavaleiro, ou são encantadas para não aderirem à religião cristã. Mas vamos à lenda das Mouras da Cisterna.
 
O mar rugia enfurecido. O vento provocava-o, assobiando raivoso. Contorcia-se o mar no seu imenso corpo verde-escuro, vomitando espuma das goelas escancaradas. Já os pescadores haviam arribado à praia. Não faltava nenhuma embarcação. Mas o vento zunia, numa irritação crescente. E o mar, não lhe ficando atrás, bramia com mais força ainda, como se quisesse alagar a terra e subir até ao castelo.
Com a camisa encharcada, cabelos soltos ao vento, Vicente subia a encosta. Vista do alto, a paisagem era de esmagadora maravilha. Começara a escurecer, embora a tarde ainda estivesse no começo. Mas as nuvens, correndo baixas e volumosas, ameaçavam descarregar toda a água que traziam em si. E tapavam o Sol. E escondiam a luz.
Vicente chegou ao castelo. Afastara-se um tanto do casario. Estava só. Só com a natureza em fúria. Era assim o Vicente. Gostava da aventura e dos ambientes pouco calmos e solitários. Por isso adorava ir para o mar. E era dos últimos a aportar quando a tempestade se avizinhava. Gostava de sentir o vento bater-lhe no rosto. Adorava o mar quando ele se mostrava revolto. E se fosse possível casar com uma sereia, era essa, decerto, que lhe levaria o coração. Talvez por isso, a única cachopa que lhe agradava era a Laurinda, que todos achavam meia louca. Mas ele sabia que ela era apenas diferente das outras. Diziam os vizinhos que ela talvez fosse alguma das mouras da cisterna, desencantada com a morte dos pescadores que elas sabiam apanhar. Laurinda aparecera ali já cachopa feita, sem eira nem beira nem se confessando a ninguém. Mas era linda, lá isso era! A cachopa tinha por hábito ir, de vez em quando, para as bandas do castelo. Ria-se das mulheres do lugar quando lhe perguntavam se não tinha medo das mouras da cisterna. Moura ou não, Laurinda era a preferida do Vicente.
A tempestade continuava a rugir. Vicente olhou o castelo. E resolveu-se a penetrar para lá da porta, outrora rica e agora reduzida a uma aberta na pedra escura. Ouvira contar várias vezes a lenda das mouras encantadas. Escutara a descrição do castelo quando ele era habitado. Viu a casa do alcaide e viu a cisterna — ou antes o local onde diziam ter existido a cisterna. Na verdade, uma larga fresta mostrava que uma boca negra fora tapada com pedra e areia. Vicente apanhou do chão uma pedra, atirou-a pela fresta. A pedra foi tilintando como se na queda fosse embatendo nas paredes de um poço. Por fim terminou a carreira num som surdo. Vicente sorriu. Era de facto ali que existira a cisterna, no tempo dos mouros. Dali tinham saído as mouras encantadas, segundo histórias dos antigos. Talvez dali tivesse surgido também a Laurinda, que aparecera numa tarde como aquela, em que o vento atirava as ondas do oceano de encontro à penedia, como se a quisesse galgar.
Uma rajada mais forte chicoteou o rosto do Vicente, com a areia e terra que levantava do chão. O rapaz levou as mãos aos olhos. Quando as retirou, teve um movimento de surpresa. Na sua frente estava mulher ainda mais bela que a Laurinda. Envolvia-a um manto branco, e os seus olhos faiscavam de modo estranho. Vicente quis esconder a sua surpresa, não destituída de certo receio. Perguntou:
— Donde surgiste?
A mulher sorriu, antes de responder:
— Vim, porque me chamaste.
Ele admirou-se mais ainda.
— Chamei-te? Se nem abri a boca...
— Bateste à porta da minha morada, com uma pedra!
— Eu?
— Sim, tu. Há momentos apenas. E como agora é a minha vez... aqui estou!
Vicente compreendeu. Pelo menos julgou compreender.
— Ah... és moura? Donde vieste?
— Da cisterna.
— E que pretendes?
— Que me desencantes.
— E que devo fazer?
— Deverás fazer-te ao mar, para nos visitares, a mim e às minhas companheiras.
— Agora?
— Pois claro!
— Mas quem é o louco que se vai arriscar a sair?
— Tu!
Ele fitou-a. Os seus olhos reluziam.
— Não! Não caio nessa! Tu poderás salvar-te, acredito. Mas eu não. E entre nós dois, prefiro a minha vida!
— E rejeitas uma mulher como eu?
— Tenho a Laurinda!
— Pois fica-te com ela! Terás o castigo de não quereres ajudar-me!
A moura desapareceu. O vento continuava zunindo. Nesse mesmo momento, em vez de uma, surgiram várias mouras. Faziam uma algazarra imensa. Rodearam o Vicente. Ele estava perplexo. Interrogou, ansioso:
— Que me querem?
Uma delas respondeu:
— Vamos levar-te para o fundo do mar! Ficarás connosco!
Teimoso, Vicente gritou:
— Sumam-se da minha vista! Não quero ir para o fundo do mar!
— Porquê? Tens medo?
— Quero viver a minha vida e não a vossa!
Uma gargalhada em uníssono rebentou da boca daquelas sete ou oito mouras. O vento, zunindo, desafiou-as num assobio estridente. Vicente sentiu, de súbito, que estava tão leve como um vime. Sentou-se numa pedra. Gritou:
— Deixai-me! Ide-vos embora!
Uma delas retorquiu, sarcástica:
— Pois experimenta deixar-nos! Põe-te em pé e anda!
— Que me acontecerá?
— Serás levado para o mar, leve e insignificante como uma pena ou um farrapo!
Vicente mostrou-se inquieto. Implorou:
— Nunca mais virei ao castelo, juro-vos! Nunca mais andarei aqui durante a tempestade! Mas deixai-me ir embora! Os que vos obedeceram morreram todos!
Um grito veio correndo com o vento:
— Vicente!... Vicente!...
Era a Laurinda. Ele pôs-se de pé.
O vento zuniu mais forte. Sentiu-se arrastado. Uma dor forte na nuca. E deixou de ouvir o vento, de ver a Laurinda, as mouras e o mar revolto…
 
Um ruído confuso borbulhava aos ouvidos de Vicente. Não era barulho do mar, nem o assobio do vento, nem as vozes das mouras da cisterna. Era uma espécie de oração, como as que a avó lhe rezava à noite, ao deitar. Mas uma oração rezada por muitas bocas...
Vicente fez um esforço. Abriu os olhos. Logo uma voz gritou:
— Está vivo!
O grito despertou-o. As vozes silenciaram. Vicente tentou soerguer-se. Vários rostos se inclinaram sobre ele. Eram as mulheres do lugar e alguns dos seus companheiros de trabalho. Vicente perguntou:
— Que me aconteceu?
Um dos homens explicou:
— Encontramos-te na penedia, por debaixo do castelo! Se não te apanhássemos, morrias. Deves ter ido ao castelo e caído pela ribanceira.
A palavra castelo reavivou-lhe a memória. Sentou-se na cama. Perguntou, ansioso:
— Onde está a Laurinda?
As mulheres entreolharam-se. Os homens não responderam. Ele insistiu:
— Viram a Laurinda?
O que havia falado antes, esclareceu:
— Sabes... Já passaram dois dias sobre o temporal. E como a Laurinda também não aparecia... pensamos que ela... recolhera à cisterna… e te fizera isto!
Vicente gritou:
— Não foi ela! Procurem-na!
— Já a encontrámos.
— Onde?
— Junto à cisterna.
E intencionalmente:
— Estava morta.
Vicente pulou da cama.
— Malditas! Elas mataram-na!
— Elas quem?
— As mouras da cisterna! Laurinda quis defender-me!
E num grito cheio de dor:
— Hei-de arrasar o castelo!
Um dos pescadores tentou acalmá-lo.
— Deita-te e descansa, homem! Bateste com a cabeça na penedia. O temporal estava medonho! Estás a dizer coisas à toa…
Vicente resistiu aos que procuravam retê-lo.
— Deixem-me! Quero ver Laurinda ainda uma vez! Quero ver o que lhe fizeram!
— Já a enterrámos. Tinha o rosto todo ferido. Dir-se-ia que a mataram à pedrada. Mas deve ter sido o vento… ou então...
Calou-se o pescador. Vicente concluiu:
— ... ou então as mouras da cisterna! Ficaram furiosas por ela ter vindo salvar-me!
Vicente deixou-se cair sobre uma cadeira. Tapou o rosto com as mãos. Praguejou. Depois levantou-se. Alguém, inquieto, indagou:
— Aonde vais, Vicente?
— Ao castelo!
— Estás louco! Não podes!
— Hei-de destruí-las a todas!... A todas!...
Uma velha sentenciou:
— Vicente! De nada te serve ires lá acima. Só com orações poderás destruí-las! Anda… reza connosco... reza... Padre Nosso... que estais nos Céus...
Vicente respirou fundo. E tornou-se dócil.
— Padre Nosso… que estais nos Céus...
Num coro mais vivo, a oração chegou ao fim. Junto a uma imagem de Cristo, uma lamparina vacilava. Mas a fé naquelas almas era forte e firme como as ondas no mar!...

Desde esse dia, em Sesimbra, nunca mais os pescadores subiram ao castelo em dias de tempestade, quando o mar, verde-escuro, ruge enfurecido, e o vento o provoca, assobiando, raivoso!...

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume III, pp. 153-157
Place of collection
Sesimbra (Castelo), SESIMBRA, SETÚBAL
Narrative
When
20 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography