APL 707 A lenda da cova da onça

Naquele tempo em que os mouros
Traziam, presos p’las mãos,
Os povos do nosso Algarve,
Que todos eram cristãos,

Naquele tempo, dizia,
Até as ervas do chão
Morriam, abandonadas,
Que metiam aflição.
 
As rosas que em outros tempos
Viviam a gargalhar,
Estavam murchas, agora,
Morriam com falta de ar.

E os cravos, as açucenas,
Os goivos, mais os martírios,
Finavam-se, pelos caminhos,
Torturados de delírios.

Toda a fonte que cantasse
Já seca e muda era agora,
E até as águas dos rios
Não corriam como outrora.

Jamais as aves trinavam
Nos braços dos figueirais;
Todo o ser, feito vivente,
Sofria, sofria mais.

Era a terra deste Al-Gharb,
Que jardim já fora então,
Pedra só e cinza solta,
Como se fora um vulcão.

Mas... a lenda o diz também...
um castelo era sustido,
Ali à beira do mar,
Sobre uma só rocha erguido.
 
Ben-Ahmede estanciava
Com sua filha, Djahira,
Que chorava amargamente,
Porque de longe saíra.

Nem o cuidado do pai,
Com extremos de doçura,
À doença da saudade
Dava alívio ou dava cura.

Nem os perfumes do campo,
Ao redor do seu castelo,
Todo feito de jardins,
Podiam, também, fazê-lo.

Nem as falas, nem os risos,
Das suas damas de honor,
Nos seus lábios descorados,
Lhe punham rosas de cor.
 
P’r’ali vivia, doente,
Tão sòzinha e entristecida,
Que, p’ra ver um rei cristão,
Dava metade da vida.
 
E assim chorava e sonhava
Com uni príncipe encantado,
Mas o seu pai, Ben-Ahmede,
Tinha-a ali aferrolhado.
 
Não qu’ria, fosse quem fosse,
Tontura de homem já velho,
Que lhe levassem a filha
Que era luz e seu espelho.

Nem os vális sarracenos
Ali podiam chegar,
Porque Allah os afundava
Nas águas verdes do mar.

Assim, Djahira murchava
Como as rosas dos canteiros,
Enquanto o pai, tresnoitado,
Gritava dias inteiros.

E a pobre moça, coitada,
Cada dia era pior,
Sem carinhos de ninguém
E sem ternuras de amor.

Mas uma vez, uma vez,
Era já ao pôr do sol,
Pôde ela ouvir, no seu leito,
O trinar dum rouxinol.

Diz aqui a lenda antiga,
Que sempre a ouço falar,
Que Ben-Ahmede não ‘stava
No castelo à beira-mar.
 
Tinha ido a mais longes terras
À procura de doutores,
Pra salvar, se inda pudessem,
A filha dos seus amores.

Assim ela pôde ouvir
Um tão doce gorgear
Que durou, por noite fora,
À luz branca do luar.

Ao outro dia, a princesa,
Vestida toda de branco,
Esperou que a ave canora
Descesse sobre um barranco.

E, à hora do sol poente,
Já de novo, o rouxinol
Encheu o ar de canções
Rezadas em si bemol.
 
Era tão doce o trinar
E tão suave era o canto,
Que a moirinha, prontamente,
Nas faces secou seu pranto.

Diferente da da ave
Outra voz ali se ouvia.
Era doce, era mais doce,
E docemente dizia:
 
“Mulher bela entre as mais belas,
 “Irmã das noites de v’rão,
“Se tu quisesses moravas
“Aqui no meu coração...

“Tenho palácios, castelos,
“Forrados a folhas de ouro,
“Mas, p’ra ti, é tão pequeno,
“Inda assim, esse tesouro...

“Nada mais tenho p’ra dar,
“Mas tudo o que tenho é teu,
“E, se mandares, eu vou
“À conquista de outro céu...

“Vem aqui, mulher amada,
“Té junto do coração,
“Deixa, p’ra sempre, esquecida,
“A iníqua lei do Corão...
 
Já ia a lua mais alto,
Deitando sobre o castelo
Alvo manto de luar
Com pér’las do sete-estrelo.

E Djhaíra então saíu,
Pisando de leve o chão,
E ali mesmo se aninhou
Nos braços do rei cristão.

Quantos beijos, quantas juras,
Trocaram nesse momento.
E entregaram-se um ao outro,
P’ra sempre, por juramento.

Mas logo a noite apagou
As luzes que tinha acesas,
E não mais eles se viram
Por aquelas redondezas.
 
Passaram-se, assim, três dias
Sem mais sol e sem luar,
Três noites longas que foram
Um constante clamorar.

Depois... ah!... não sei dizê-lo...
A lenda fala por mim:
Houve um grande terramoto
Que a tudo em breve pôs fim.

Aonde fora o castelo
Uma cova havia agora,
Onde ao fundo não chegava
Luz do sol a qualquer hora.

Nunca mais se soube, então,
Da moira princesa amada,
Nem do leal cavaleiro
Que a tinha por desposada.

El-rei cristão lá ficara
Soterrado nessa cova,
Onde uma fera dormia
Ao chegar da lua nova.

Fora Allah que de outros mundos
Ditara a separação
Entre uma Infanta da Pérsia
E um valente rei cristão.

É a lenda ainda um pouco
Que nos diz o que depois
Se passou nesse lugar
Amado dos rouxinóis.

Mas o sono do animal
Era um choro continuado,
Que durou por muitos séculos
Naquele chão requeimado.

Só depois então se viu
Regressar gente cristã,
Passados tão longos anos
Sobre tão triste manhã.

E dizem que inda se ouvia,
Se a lua nova chegava,
Lá para os lados do mar,
O chorar da fera brava.
 
Quiseram então chamar
Àquele sítio um nome
Que pudesse inda lembrar
Quem de amor morreu de fome.
 
Consultados os antigos,
Que dos seus avós ouviram
A lenda que vos contei,
Por entre si decidiram:

— ‘Porque a fera ali passava,
“Fugidia e absconsa,
‘O lugar terá por nome
Sitio da Cova da Onça.

Pois assim ficou chamado,
Dos tempos p’la imensidão,
O lugar onde se amaram
Moira infanta e el-rei cristão.

Source
LOPES, Morais Algarve: as Moiras Encantadas , Edição do Autor, 1995 , p.53-61
Place of collection
OLHÃO, FARO
Narrative
When
20 Century, 80s
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography