APL 1674 [As Bruxas e o Diabo]

«A velha Reitora, que era das bruxas mais refinadas e que se gabava de falar com o Diabo à meia-noite, dizia sempre ao meu Manuel: “A ti ninguém te chega!” E de facto, o meu Manuel ia e vinha de noite da praia, a toda a hora e nunca foi perseguido:»
«Mas o Tio Bexiga o Tio Lindo e quantos mais não tiveram que carregar com as bruxas às costas até casa? Havia uma, a velha Perrucha, que se regalava toda de ir escarranchada nos homens! E era levá-la e caluda, porque se falassem corria-lhes mal...»
 «E o caso não era para menos. Ao Tio João Bravo, levaram-no por ares e ventos que ele até perdeu os sentidos e nem soube por onde andou. Apareceu, no dia seguinte no monte de Laundos! Ele só soube dizer que ao tocar da meia-noite, quando estava junto da Ponte Velha, na praia, com a cesta às costas e ia com destino ao barco, lhe apareceram as bruxas às risadas, o rodearam e levaram… para o deixarem no monte naquele estado... esfalecido…»
 «E ao Tio Reina, seu parente, não fizeram o mesmo?
 “Um dia, o nosso Francisco passava à meia-noite pela beira do mar e estavam no fieiro do Tio Lourenço umas poucas de bruxas. E uma delas disse bem alto, que meu irmão ouviu: “Não se lhes faz mal; que é filho do meu compadre!” E o nosso Francisco conheceu-a bem: era a Tia Perrucha, comadre do meu pai.»
 «E a Tia Pinheira não foi uma noite num alguidar a Buarcos? O homem estava a beber a companha e ela tirou-lhe o barrete. Quando ele se viu desbarretado e reparou nela, espantado, perguntou-lhe: “Quem te trouxe aqui, diabo?” e ela disse-lhe: “Não te importes, que eu vou já embora. Diz-me quantos milheiros tomou o barco.” E obtendo a resposta, desapareceu. Na manhã seguinte, anunciou às mulheres o que tinha sucedido ao barco, tintim por tintim.»
 «E a Tia Pascoela, que era das mais refinadas? Em certo dia surgiu um temporal desfeito e os gritos na pescaria eram de cortar a alma, porque os barcos estavam todos para o mar da Cartola. Um telegrama, porém, tinha vindo a dizer que eles estavam em Buarcos. Tudo sossegou. Mas a bruxa começou a dizer que não, que os barcos tinham saído daquela terra e estavam no mar, que ela os “vira sair...” E era certo! Passadas horas, eles apareciam aí, à barra, debaixo de tempo que era um louvar a Deus!»
 «E esta que contaram em casa das do Galo? Um moço namorava uma linda rapariga da pescaria. Quando achou tempo de se casar, propô-lo à rapariga, para começarem a fazer os preceitos da classe. Mas ela disse em resposta: “Casar não; eu não posso casar” e deu em chorar que nem uma videira, O moço ficou admirado, tanto mais que sabia que a rapariga lhe tinha amor. Instou com ela para que lhe dissesse os motivos. E a rapariga sempre: “Não posso dizer! Não posso dizer!” E por mais que o rapaz voltasse a instar, ela confirmava: “Não posso casar! Não posso casar!” Então o rapaz perguntou-lhe se era coisa de honra. “Não há nada de honra, juro-te!”, e chorava, O moço disse que lhe tinha de dizer à força, custasse o que custasse; se era coisa que ele pudesse remediar, nem que arriscasse a vida, que o fazia. Então, ela contou: “Sou bruxa! Tenho que correr o fado!...” Ele perguntou-lhe: “Não há remédio para isso?” — “Há. Tu podes quebrar o meu fado, mas arriscas a tua vida! Se quiseres valer-me, fazes o seguinte: Eu passo logo à meia-noite com as minhas companheiras junto do castelo. Sou a sétima. Quando chamarmos Lulu! Lulu! — que é o chamadoiro do Diabo — tu estás dentro de um S. Selimão de seis pernas, riscado no chão, enlaças-me com uma corda e arrasta-me para dentro e assim quebrarás o meu fado.” O rapaz foi uma hora antes, riscou o S. Selimão e pôs-se à espera. Quando elas vieram, contou até à sétima e enlaçou-a, arrastando-a para dentro do S. Selimão. As outras bem quiseram chegar-lhe, mas o siglo afugentou-as e assim se quebrou o fado da rapariga, que casou com o rapaz.»
 «E então no campo da Boza e nos areais de Martim Paz? Quantas pessoas viram ali as bruxas, em fralda de camisa, o Diabo no meio, com pés-de-cabra, por cima de uma fogueira e elas a dançarem em roda, às risadas?»
 «E quando elas entram em vento pelos ferrolhos das portas e vão ter com as mulheres paridas para sugar-lhes os inocentes? Quantas crianças têm aparecido debaixo da cama?»
 «Um dia, tinha o meu António três meses, quando elas entraram em nossa casa à meia-noite. Abriram para o lado o cortinado da camareta e sentaram-se na cama às risadas. Amarrei-me ao meu filho e gritei, gritei quanto pude. Mas a minha mãe, que dormia na camareta ao lado, não foi capaz de me ouvir! Elas bem fizeram por mo arrancar, mas Deus deu-me força e não o larguei! Até que se foram embora. Ao saírem, eu voltei a gritar e então a minha mãe ouviu-me. Contei-lhe o que se passou; o meu menino estava roxinho! Fomos ver as portas; tudo estava fechado! Entraram e saíram em vento!»
 «Havia muito que fazer e eu e o meu homem resolvemos começar o serão à meia-noite. Fomos fazê-lo para a cozinha. Mas antes, deitei a minha Ana no berço e disse à minha Maria que ficasse a tomar conta dela, no quarto da frente. A Maria deitou-se na minha cama, junto à qual ficou o berço. Quando acabámos o serão, fui ao quarto e não encontrei a Maria. Julguei que ela tinha ido para casa da minha mãe, que ficava ao lado da nossa. Fui lá e não estava. Dei em gritar. Procurámos, procurámos e nada! Voltámos à cozinha e ouvimos um resfolegar alto: encaminhámo-nos para o sítio donde se ouvia a respiração e lá estava a menina, dentro da maceira de cozer o pão, nuazinha, cheia de frio! As bruxas tinham-na levado para ali.»
 «O Tio José António, no mar das fieiras, perto da Torreira, para lá de Espinho, estava a largar as redes da, sardinha, aí por umas oito a dez braças de fundo, quando ouviu umas vozes: “Queres sardinha? Rema mais para a terra;” e o mestre, atraído por aquelas vozes, mandou remar, remar, até que o barco encalhou na areia. Viu, então, no areal as bruxas às risadas, a baterem palmas e encaminharem-se para o barco. Os tripulantes, assustados, fincaram os remos na areia e conseguiram fazer navegar novamente o barco.»
 «E, então, porque é que hoje não se levanta o cavername de um barco novo sem se lhe colocar ao capelo um alho-porro e pregar na proa uma moeda de cruz? É porque as bruxas pelavam-se todas por esfrear os barcos novos, indo todas as noites para dentro deles, com o Diabo ao leme, a remar e a berrar — i-ó-i-ó-i-ó! — tolhendo o barco para sempre. Agora, com o alho e a moeda de cruz, não põem neles o pé!»
 «O Tio Tomás Chamorro, do Ramalhão, ia uma noite a entrar em casa, quando reparou que paravam à porta da benda da Tia Silva, à esquina da Rua Serpa Pinto, umas seis bruxas, estando três debaixo de um guarda-chuva. Pôs-se a ver o que faziam e viu que uma a uma iam desaparecendo, entrando pelo ferrolho da porta da benda. Foi então espreitar e viu as bruxas a tirarem o vinho das pipas e a beberem-no em grande pândega, entornando algum pelo chão. Assim que acabaram, saíram novamente pelo ferrolho para a rua e encaminharam-se pela cangosta para o penedo do Cuim. Ele acompanhou-as, porque queria ver até onde elas iam. A meio da cangosta, veio ter com ele uma das bruxas, a Ana Soisa, e disse-lhe: “Vai-te embora Tomás, que te pode suceder mal!” — mas ele teimou e continuou para a frente. Passados momentos, voltou outra bruxa, a Perrucha, e disse-lhe: “Tomás, acautela-te! Vai-te embora que é melhor!”, mas o Tio Chamorro continuou o seu caminho, sentando-se no penedo do Cuim. As bruxas encaminharam-se para a praia e foram brincar com o rexio das vagas, que farfalhavam na areia e exclamavam: “Ah! Ah! Ah! que regalo!” Então, o Tio Tomás ganhou medo e foi a correr para casa, não fosse o espelho que trazia no bolso despedaçar-se e elas chegarem-lhe. No dia seguinte lá se viu o vinho na banda, entornado.»
 «Disseram no mar a um companheiro que a mulher era bruxa; que já tinha sido vista com outras, à meia-noite, na Fonte Nova, à Vila Velha.
 O homem quis certificar-se da verdade e preparou-se: pisou alhos e benzeu-se com um rosário, enfiando-o ao pescoço. Assim prevenido contra o poder das bruxas, deitou-se e fingiu que dormia. A meia-noite bateram à porta e chamaram baixinho: “Anda!” A mulher levantou-se devagarinho para o não acordar e pegando na fralda da camisa, passou-a três vezes sobre a cara do homem dizendo:

Eu te benzo á meu arau, araú,
Com esta minha fralda, com este meu e...
Para enquanto eu vou e venho
Não acordes tu.

 O homem, ao ouvir isto, levantou-se, e dando-lhe com o rabo de um machado, respondeu à benzedura:

Eu te benzo meu diabo,
Com o rabo deste machado!

 As bruxas companheiras que estavam cá fora bem lhe queriam acudir, mas o homem estava bem resguardado com os alhos e o rosário e elas não lhe puderam chegar.»

 

Source
GRAÇA, A. Santos O Poveiro , Publicações Dom Quixote, 1998 [1932] , p.73-76
Place of collection
Póvoa De Varzim, PÓVOA DE VARZIM, PORTO
Narrative
When
20 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography