APL 2243 Maria Mantela

Segundo a crónica da Província da Soledade, Maria Mantela era natural de Chaves, e não da cidade do Porto, como alguns querem dizer.
 Ainda hoje quem passa na Rua da Misericórdia daquela cidade há de ver um largo portão de arquitectura gótica, como único vestígio e recordação da casa de Maria Mantela e de Fernão Gralho. Sobre este pórtico edificou-se, haverá pouco mais de meio século, um pequeno primeiro andar, e a parte restante do edifício ficou servindo de quintal à moderna edificação.
 Pelos anos de 1300 ocupava Fernão Gralho importantes lugares na vila de Chaves que, juntamente com os haveres, lhe rendiam para viver com a grandeza e ostentação própria daquela época.
 Com respeito a sua mulher Maria Mantela, diz a tradição que era tal a sua austeridade, filha talvez da sua educação, que não acreditava que uma mulher pudesse ter dois ou mais filhos dum só parto, sem que estes fossem filhos de diferentes pais.
 Um dia bateu à sua porta uma pobre mendiga, natural de Valdanta, povoação próxima da vila, e, com dois filhos nos braços, pediu esmola. Apenas a dona da casa viu as duas crianças, que lhe pareceram da mesma idade, perguntou àquela infeliz se eram seus filhos, ao que ela respondeu que sim, e de um só parto; e, como era pobre, via-se obrigada a mendigar a caridade pública.
 Maria Mantela, longe de se compadecer daquela desgraçada criatura socorrendo-a, repeliu-a injuriando-a e disse-lhe que nunca mais batesse à sua porta, porque nenhum bem lhe faria.
 A mendiga saiu banhada em lágrimas, e Maria Mantela viu que ela, ao sair, fizera com a mão direita uma cruz na porta por onde havia entrado.
 Contou a inconsiderada a seu marido o que acabava de suceder, e este, admoestando-a, tratou de lhe fazer ver que laborava em erro gravissimo, julgando que duas ou mais crianças gémeas fossem filhas de pais diferentes. Maria Mantela, apesar das boas razões de seu marido, não se quis convencer da verdade, e continuou firme na sua convicção.
 Pouco depois, como que Deus a quisesse castigar, encontrou-se no estado de gravidez.
 Decorreu o tempo preciso, e na ocasião em que Fernão Gralho estava ausente, por ter ido a Capeludos, onde tinha parte das suas propriedades, deu ela à luz sete crianças do sexo masculino, todas muito parecidas, muito nutridas e com muita vida.
 Nesta situação, receou que seu marido julgasse dela o mesmo que ela julgava das outras mães fecundas. A sua alma sentiu-se atribulada, e, para se livrar de tão grande desgosto, só um pensamento lhe ocorreu, o pensamento do crime.
 Tinha ela então uma criada muito da sua confiança; chamou-a e ordenou-lhe que metesse seis dos recém-nascidos dentro dum cesto e os fosse lançar ao rio Tàmega, no sítio mais profundo, onde não fosse fácil encontrar vestígios de crime.
 A criada, cheia de fundados escrúpulos, repulsou semelhante exigência, mas por fim obedeceu. Era forçoso cumprir as ordens da sua senhora. Meteu as crianças no cesto, que cobriu convenientemente, e pondo-o à cabeça, partiu em direcção ao rio. Apenas chegou ao caminho das Caldas, encontrou Fernão Gralho que regressava a sua casa. Perguntou à criada o que levava no cesto. Ela vacila, empalidece, treme. Fernão Gralho mesmo de cima do cavalo, levanta uma ponta da toalha que cobria o cesto, e fica deveras admirado. A serva cai de joelhos, pede-lhe perdão e revela-lhe tudo.
 Então Fernão Gralho, em vez de seguir o caminho de sua casa, retrocede e diz à criada que o siga. Chegados que foram a sua casa fora da vila, mandou Fernão Gralho procurar seis amas, e disse à criada que, sob pena de morte, guardasse segredo; que voltasse para casa e dissesse à senhora que haviam sido cumpridas as suas ordens.
 A criada assim fez.
 Poucas horas depois, estavam as crianças entregues às amas, com muito particulares recomendações: mas sem que estas pudessem suspeitar quem fossem os pais dos inocentes que lhes foram confiados.
 Já de noite, entrou Gralho em sua casa. Apenas chegou, deram-lhe com grande alvoroço, a notícia de ter um filho, noticia que ele recebeu com manifesto prazer. Abraçou sua mulher, felicitou-a, e beijou seu filho que não fazia diferença alguma dos outros seis, que a Providência quis que ele salvasse.
 Eram quase passados sete anos depois deste acontecimento. Fernão Gralho entendeu que era tempo de fazer uma surpresa a sua mulher; e, chegada a ocasião, disse-lhe que era preciso que ela fosse a Capeludos, para tratar de certos arranjos, visto ele não poder ir, em consequência dos seus encargos públicos.
 Maria Mantela preparou-se e marchou no dia seguinte, pela manhã cedo.
 Seu marido logo que a viu partir, mandou recolher as crianças, e vestiu-as todas igualmente, com fatos que de antemão havia mandado preparar.
 Maria Mantela voltou nesse mesmo dia, junto da noite, e, apenas entrou na sala, viu brincar muito alegres, em vez de uma, sete crianças.
 Seu marido, que a esperava, disse-lhe apenas ela aparece:
 — Maria, escolhe daí o teu filho.
 Eram todos iguais.
 Maria cai nos braços de seu marido a chorar de alegria e arrependimento:
 — Foi um castigo do céu — diz ela.
 — Arrepende-te e Deus te perdoará — respondeu Fernão Gralho, abraçando sua mulher.
 E ambos eles amaram muito seus filhos, que todos foram padres, e cada um mandou edificar sua igreja, as quais vem a ser: igreja matriz de Chaves; igreja de Santa Maria de Calvão; igreja de Santa Maria de Moreiras, igreja de Santa Maria de Emeres; igreja de Santa Leocádia; igreja de Vilar de Perdizes; e igreja do Mosteiro de Daso.
 Depois de todos terem falecido, lia-se numa sepultura rasa, na igreja matriz da Vila de Chaves, defronte do Altar de Sant’Ana, o seguinte epitáfio:

AQUI JAZ MARIA MANTELA
COM SETE FILHOS AO REDOR DELA

Source
VASCONCELLOS, J. Leite de Contos Populares e Lendas II Coimbra, por ordem da universidade, 1966 , p.670-672
Year
1953
Place of collection
CHAVES, VILA REAL
Informant
Luis Ferreira de Castro Soromenho (M),
Narrative
When
19 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography