APL 3014 Lenda da Cabeça da Velha

Esta lenda teve origem na serra de Peneda, num lugarejo do mesmo nome, ao norte de Portugal. Diz-se que em tempos que já lá vão existia ali — hoje freguesia de Gavieira — um grande domínio habitado por uma jovem rica e muito bela, órfã de pai e mãe, que vivia sob a tutela de um tio. Este era um fidalgo poderoso e cruel, senhor absoluto da sua vontade e que dominava a fraca donzela. Um dia a jovem apaixonou-se por um fidalgo talentoso, belo e jovem também, mas arruinado. Não teve porém coragem de tornar público esse amor, pela certeza de que tudo fariam para o contrariar. Amava, pois, em silêncio, tendo por confidente apenas uma velha aia, que de vez em quando conseguia levar o jovem fidalgo à presença da sua amada. Eram breves esses momentos, mas neles colhiam a força que os alimentava nas horas de ausência. Mas a quantos perigos se expunham! Quanta ansiedade, quanto orgulho recalcado da parte do jovem D. Afonso, que dava tratos à imaginação para tornar-se tão poderoso como o próprio tio da sua bem-amada, pois só assim poderia merecê-la, sem inquietações!
Um dia em que o jovem fidalgo não era esperado, este procurou a velha aia. Ao vê-lo, a mulher afligiu-se.
— Senhor! Ainda ontem aqui viestes… e já hoje...
D. Afonso interrompeu-a:
Marta, preciso da tua lealdade!
— Bem sabeis que podeis contar com ela. Todavia… nem em tudo me será possível servir-vos. Que desejais, senhor?
D. Afonso aproximou-se e disse num tom de voz abafado:
— Preciso falar novamente com a tua ama.
— Falar-lhe... Como?
— A sós. E fora daqui.
— A sós?
— Sim.
A velha Marta levou as mãos ao rosto num gesto de significativa aflição.
— Senhor, isso é muito perigoso! Se o senhor D. Bernardo vos apanha...
— Só tu saberás do nosso encontro.
A velha aia meneou a cabeça e tornou:
— Senhor... desejaria ajudar-vos! Porém, se o acaso leva meu amo a desconfiar de algo, tudo estará perdido!
Sempre animoso, D. Afonso retorquiu:
— Tu arranjarás bem as coisas. Contamos contigo!
— Mas...
— Nada temas! Lembra-te de quanto a minha pobre Leonor tem sofrido e quanto és estimada por ela.
Marta murmurou, quase para si própria:
— A minha querida Leonor tem ajudado muito os meus... É justo que eu a ajude. Contudo, embora lhe deva a vida de meu sobrinho José, não poderei arriscar a dela e a do senhor D. Afonso...
O jovem fidalgo tirou um rolo de papel que trazia oculto e declarou, decidido:
— Marta, não resistas por mais tempo! Leva a Leonor esta carta e ajuda-a no que puderes.
Marta não respondeu logo. Pegou na carta, dissimulou-a sob a sua capa e declarou por fim:
— Seja... Tentarei ser-lhe útil.
— Prometes?
— Prometo, senhor D. Afonso!
— E ser-lhe-ás sempre fiel, sem nunca descobrires os seus segredos?
Marta endireitou-se, quase ofendida:
— Senhor! Eu seja pedra se alguma vez os trair!
— Está bem, Marta. Acredito em ti.
A velha aia olhou o horizonte e declarou numa voz que o receio voltara a velar:
— Senhor... perdoai, mas tenho de retirar-me. O Sol começa a descer e o senhor D. Bernardo está quase a chegar do seu passeio.
Calou-se, de olhos muito abertos. D. Afonso perguntou:
— Que tens, Marta?
Ela ciciou quase:
— Olhai! Aí vem ele!... É preciso que não nos veja!
Mas já uma voz sonora cortava o ambiente:
— Marta! Marta!
Pressurosa, a velha aia foi ao encontro do seu senhor.
— Aqui estou, senhor... Que quereis de mim?
O fidalgo indagou, desconfiado:
— Donde vens?
— Daqui, senhor...
— Daqui, donde?
— Do jardim.
— E que fazias no jardim?
Ela começou a perturbar-se.
— Bem... eu... fui ver se as plantas estavam bem tratadas.
— Estavas só?
— Sim, meu senhor...
Um grito colérico interrompeu-a:
— Mentes! Bem vi um vulto a afastar-se. Diz-me quem era!
Tremendo, a velha voltou a mentir.
— Senhor... era... o meu sobrinho José.
Voltou D. Bernardo a gritar.
— Eu não te proibi que o recebesses em minha casa?
Ela atreveu-se a dizer:
— Mas... não foi em vossa casa... foi no jardim...
— Foi dentro dos meus domínios! Tudo isto me pertence, não o esqueças!
A velha aia retorquiu, submissa:
— Não o poderei esquecer, senhor!
— Então, porque me desobedeceste e lhe falaste?
Marta não respondeu logo. D. Bernardo voltou a elevar o tom de voz:
— Responde! Que queria ele de ti ou de mim?
Tartamudeando, a velha respondeu:
— Queria… apenas... ver-me!
D. Bernardo fingiu rir, mas o esgar tornou-o ainda mais temível.
— O quê? Um conspirador... um ladrão com arrobos sentimentais?... Não acredito, nem tu acreditas! Vamos, diz a verdade!
— Senhor... eu disse...
— Não mintas! Que estás a ocultar-me? Bem te vejo tremer!
— Senhor… eu nada oculto!
— Pois bem: como não posso crer na boa fé do teu sobrinho, tratarei de me livrar dele de qualquer maneira. Assim já não voltará a rondar esta casa!
Marta sentiu-se empalidecer. As forças fugiram-lhe. Suplicou:
— Senhor D. Bernardo! Não faça mal ao meu sobrinho!
— Porque não? Não foi a sua atitude a de um ladrão, fugindo de mim?
Marta não conseguiu reter as lágrimas. D. Bernardo continuou:
— O teu sobrinho procedeu mal comigo e tê-lo-ia mandado executar se não fossem os pedidos de Leonor. Mas ele prometeu afastar-se daqui e nunca mais pôr os pés nos meus domínios. Ora hoje, como tu própria confessas, ele esteve aqui... e fugiu como um ladrão. Voltou a prevaricar... Nada já o salvará!
No auge da aflição, Marta gritou:
— Senhor! Não era o meu sobrinho José quem estava aqui comigo!
D. Bernardo pareceu acalmar-se, embora a sua expressão ficasse ainda mais dura.
— Bem me tinha parecido que mentias! Então... se não era o teu sobrinho.., quem estava a falar contigo que sentiu necessidade de fugir do dono da casa?
Marta chorava sem responder. D. Bernardo voltou a enervar-se. O tom de voz voltou a subir.
— Vamos! Se não respondes, pagará o teu sobrinho José pela culpa de um outro a quem ocultas! Alguém terá de suportar a minha vingança. Diz-me: com quem falavas?
Tremendo, numa voz quase extinta, Marta elucidou:
— Senhor... quem estava a falar comigo... era um nobre fidalgo.
— O seu nome? Depressa!
— Prometi ocultá-lo...
O velho fidalgo teve um gesto de impaciência, mas baixou o nível de voz.
— Trata-se de minha sobrinha Leonor, não é assim?
Chorando mais ainda, a velha aia pediu:
— Tende piedade dela, senhor D. Bernardo! É tão nova… tão boa...
Irónico, o fidalgo retorquiu:
— Tão boa que escolhe os namorados sem me consultar!
— Ela ama-o...
Esta pequena frase teve o condão de voltar a encolerizar o velho fidalgo.
— Ah, sim? Pois eu a castigarei dessa afronta. E já agora: que te pedia esse fidalgo?
Marta hesitou uns instantes, mas declarou:
— Pedia-me... que dissesse à minha pobre ama... que sempre será dela o seu pensamento e o seu coração.
O velho fidalgo meneou a cabeça negativamente.
— Marta, não voltes a mentir-me! Julgas que aceito o facto de um homem expor a vida só para te dizer uma coisa dessas? Reflecte bem! Se disseres a verdade, dar-te-ei algumas das minhas terras do Douro e lá poderás viver descansada com o teu sobrinho José. Se mentires... morrerás tu, José e o outro, que hei-de certamente encontrar!
Marta gritou, esquecida da sua condição:
— Matar José... porquê? Ele nada tem a haver com isto?
— Com isto o quê?
— Com os amores de D. Leonor... e do senhor D. Afonso...
O velho cerrou um dos punhos.
— Já calculava! E agora dá-me esse papel que trazes escondido debaixo da capa!
— Senhor...
— Dá-me o papel! Bem o vi esconder!
Tremendo cada vez mais, a velha entregou a missiva, declarando:
— Senhor, eu nada sei do que aí diz...
— Vais saber quando mo entregares. Deixa ver isso! Tiveste sorte em ter-te encontrado. De contrário poderia ter-te custado a vida, essa obediência aos amores da tua ama!
Marta chorava em silêncio. D. Bernardo, também em silêncio, ia-se inteirando do segredo da sua sobrinha Leonor. Enrolou a carta e olhou com severidade a velha aia.
— Agora que já sei tudo, ou te calas e te perdoo... ou morrerás!
E dando-lhe de novo a missiva, acrescentou:
—Toma! Leva isto à tua ama e nada lhe contes deste nosso encontro. Preciso de apanhar os pombinhos em flagrante. Anda, vai!... E não digas uma só palavra do que se passou!
Sem coragem para enfrentar de novo a cólera de D. Bernardo, Marta entregou a Leonor a carta de D. Afonso, sem qualquer explicação. Leonor leu-a com alvoroço. E ficou esperando que o dia seguinte chegasse depressa.

A impaciência torna longos os minutos e infinitas as horas. No dia seguinte, a tarde parecia não mais acabar. O Sol, agarrado à terra, beijava-a com ternura; e a noite, despeitada, esperava do lado de lá da montanha a hora do seu reinado. Quando chegou, envolta no seu manto negro, veio encontrar Leonor envolvida também num manto de cor escura. Toda ela era alvoroço e ansiedade. Chamou a aia.
— Marta!
A jovem nem reparou na palidez da velha serva. Disse-lhe:
— Acompanha-me até ao cimo daquele monte mais próximo. D. Afonso espera-me.
E as duas mulheres saíram furtivamente, corações opressos por motivos bem diversos...
 
Os amantes não precisam de ver-se para sentirem que estão perto. Ao ouvir um leve ruído de passos, D. Afonso correu ao encontro da sua amada, chamando:
— Leonor! Minha Leonor!
Ela correu também para ele. Abraçaram-se. O jovem falou:
— Minha bem-amada, nem sei o que hei-de pensar! Como poderemos viver separados tanto tempo? Só nos vimos quase de mês a mês e sabemos lá por quanto tempo... Se teu tio pensa em casar-te com outro, que faremos?
Ela murmurou:
— Ficarei contigo em qualquer cantinho do mundo!
— Querida! Eis a resposta de que necessitava. Se pedi para falar-te, foi porque vou ausentar-me por algum tempo e em missão perigosa.
Ela sufocou um grito.
— Afonso, não quero que te exponhas!
— Preciso ganhar dinheiro! Preciso ser poderoso, para arrancar-te a esse tio tirano cujo ouro é tudo para ele!
Leonor estremeceu.
— Afonso, tenho medo!
— De quê?
— De que te aconteça algo de mal. Já não poderei viver sem ti! Por isso aqui estou, expondo-me a tudo.
— Vieste só?
— Não. Marta acompanhou-me.
— Onde está ela?
— Ficou lá em baixo, a vigiar. Não vês o seu vulto?
— Vejo. Assim seguirei mais sossegado, sabendo-te acompanhada.
— Querido, amo-te tanto! Não vás para longe!...
— Hei-de voltar! Esperas por mim?
— Duvidas?
— Não!
Um ruído estranho ouviu-se a poucos metros. Afonso apertou as mãos da sua amada.
— Leonor, escuta... Tenho a certeza de que ouvi vozes!
— Não pode ser! Marta está sozinha.
— Ouvi vozes, juro-te, Leonor!
E chamou em voz alta:
— Marta!... Marta!...
Ninguém respondeu. Leonor sobressaltou-se.
— Afonso, vamos até àquele vulto. Quero ver Marta!
Desceram abraçados. Mas quando chegaram ao local onde ficara a velha aia não a encontraram. E o que viram encheu-os de pasmo. Leonor gritou:
— Afonso! Vês o que eu estou vendo?
— Vejo, querida! Marta quebrou a sua jura e Deus castigou-a, transformando-a em pedra! Isso quer dizer que estás em perigo!
Leonor agarrou-se mais ao noivo, chorando.
— Estamos em perigo! Eles vêm aí... Afonso, foge! Deixa-me aqui ficar, pois aguentarei a ira do meu tio enquanto te pões a salvo!
— Nunca! Só contigo sairei daqui! Tenho o cavalo a dois passos. Vem comigo e fugiremos para Espanha. Não há tempo a perder!
Leonor não hesitou. D. Afonso montou a cavalo, levando-a à garupa, e desapareceu na noite escura, com grande raiva de D. Bernardo, que não conseguiu alcançá-los e ficou praguejando.

Alguns anos passaram. D. Afonso conseguiu fama e poder. A felicidade morava com o par sempre enamorado. Haviam casado em Espanha. Um dia quiseram voltar ao local onde haviam deixado a velha Marta. Queriam verificar à luz do dia se não tinha sido um momento de alucinação aquele em que tinham visto a pedra enorme com a cabeça de uma velha. Na serra da Peneda, a pedra lá estava ainda, como esculpida por enorme cinzel. A cabeça da velha parecia debruçar-se sobre o povoado.
Leonor não pôde conter as lágrimas, perdoando a deslealdade de Marta, pois afinal lhe ficara devendo a felicidade, naquela noite em que D. Bernardo viera para os matar.
E em acção de graças de se terem salvo, mandaram construir uma capelinha a pequena distância da Cabeça da Velha.

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume V, pp. 131-137
Place of collection
Gavieira, ARCOS DE VALDEVEZ, VIANA DO CASTELO
Narrative
When
Belief
Unsure / Uncommitted
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