APL 2874 Lenda dos Corvos de São Vicente

Para contar esta lenda teremos de remontar ao tempo en que o rei Rodrigo perdeu a batalha de Guadalete, e os Árabes, vencedores, ocuparam toda a Península Ibérica com a excepção das montanhas das Astúrias e de Jaca. Valência foi dominada pelos Sarracenos, tal como o resto da Espanha; e algumas famílias valencianas, não querendo submeter-se ao vencedor, conseguiram reunir certas relíquias de mártires, certos objectos pessoais que estimavam, e fugir para as Astúrias. Com elas partiram também alguns monges. Mal chegaram, levantaram um templo para venerar os seus santos, e fizeram vivendas em redor, dando origem à cidade de Oviedo.
Abderrahman I decretou então que fossem convertidas em mesquitas todas as igrejas dos cristãos, fazendo desaparecer as relíquias dos santos. Foi nesse momento trágico que os cristãos retidos em Valência, e vivendo no bairro em torno da igreja onde se conservava o corpo do mártir S. Vicente, alarmados com o decreto do emir, se reuniram para buscar um meio eficiente de pôr a salvo o corpo do mártir. Resolveram, pois, emigrar. Era seu intento embarcar com a santa relíquia, rodear a costa espanhola e chegar às Astúrias.
Se bem o pensaram, melhor o fizeram. Arranjaram um barco, transladaram para lá o corpo de S. Vicente sob a guarda de um deão, reduziram a própria bagagem a simples fardos de roupa e algumas provisões, e partiram confiados na protecção divina.
Navegaram com vento favorável pelo Mediterrâneo e chegaram ao Atlântico. Mas, aí, as ondas embravecidas faziam oscilar a nave e punham olhares de espanto na expressão simples desses bons cristãos. Receosos de naufrágio, chegaram-se o mais que puderam à costa. Os tripulantes contemplavam embevecidos a beleza estranha dessas paragens para eles ignotas. Um deles perguntou ao piloto:
— Mestre, como se chamam estas terras?
O mestre olhou a terra, sorriu, e declarou:
— São os Algarves.
— Os Algarves?
— Sim. O mar aqui é rijo, puxa muito. Vou tentar mudar de rumo.
Mas eles pediram:
— Siga sempre a costa, mestre! Isto é tão belo!
Pouco depois, surgiu uma espécie de montanha que se internava no mar. 
E logo veio a pergunta:
— Como se chama este cabo?
O mestre respondeu:
— Os navegantes chamam-lhe o promontório Sacro.
Olharam-se. Promontório Sacro?... E se descessem em terra? Se o visitassem? Se lhe dessem o nome de cabo de S. Vicente, visto por ele ter passado o Santo? Todos concordaram. Mas o deão propôs mais:
— Vamos ficar aqui algum tempo e, para comemorar a nossa passagem, construiremos um templo ao Santo Mártir!
Mas os homens olharam-se em silêncio. O deão perguntou:
— Porque hesitam?
Um deles respondeu:
— Tememos os Árabes. Fugimos deles de um lado para os vir buscar a outro. Não será prudente. É melhor seguir viagem.
Os outros foram da mesma opinião e o barco seguiu a sua rota. De repente, como por encanto, levantou-se uma violenta tempestade. O barco era sacudido como casca de noz. E, num estremeção fortíssimo que fez perder o equilíbrio aos navegantes, encalhou. Para o libertar era necessário torná-lo mais leve. Não havia outro remédio. Deitaram ao mar alguma carga e todos abandonaram o navio, levando com eles o corpo de S. Vicente. Nos botes salva-vidas, subindo e descendo na crista das ondas, remaram para terra com quanta força tinham. Chegaram. O terror dominava-os. Terror pelo perigo por que haviam passado. Terror pelo desconhecido que se lhes oferecia. Exploraram os recantos mais próximos, com receio de um mau encontro com os Árabes. Mas não encontraram ninguém. Mais serenos, resolveram passar ali o resto do dia e a noite, esperando que no dia seguinte o vento fosse propício para safar o navio.
 
A manhã nasceu serena, de uma beleza transparente. Cheirava a mar e a sol. E a preia-mar ajudara a nave a sair do seu embaraçoso posto. Contentes, os cristãos voltaram a embarcar nos escaleres. Iam de novo fazer-se ao mar, rumo a Oviedo.
De súbito, um deles gritou:
— Olha! Que vês além?
Outro respondeu:
— É um navio!
— Donde virá?
— De África, talvez!
O deão aconselhou:
— Tenhamos prudência! Podem ser piratas vindos das praias africanas.
— Que havemos de fazer?
— Esperar! Esperar aqui, pacientemente escondidos, que passe o novo perigo.
— E o nosso barco?
O piloto decidiu:
— Eu e alguns marinheiros vamos afastá-lo daqui e procurar refúgio nas rochas. Caso contrário, o navio pirata pode descobri-lo e ficaremos sem meio de transporte. Quando passar o perigo, voltaremos aqui para vos embarcar.
Assim se fez. Os cristãos que guardavam o corpo do santo viram afastar-se a nave que os trouxera de Valência, enquanto eles ficavam em terra, escondidos.
Passaram horas. Passaram dias. No horizonte não se via já nenhum navio. Saindo dos seus esconderijos, indiferentes já ao perigo mouro, os cristãos interrogavam-se:
— Que teria acontecido ao nosso barco?
Mas a resposta não chegaria nunca! Compreenderam que talvez o navio pirata o tivesse descoberto e apresado, ou afundado. Os homens entreolhavam-se atónitos. Então o deão tentou alentá-los:
— Meus irmãos, uma coisa é certa: Deus salvou-nos! Estamos em terra firme, e vivos! Demos Graças a Deus!
Todos ajoelharam na rocha viva e rugosa, dando louvores ao Altíssimo. O deão voltou a falar:
— Os desígnios de Deus mostram-se por grandes ou por pequenas coisas. Eis o que Deus quis de nós: que erguêssemos aqui um santuário para nele colocar e venerar o corpo do Santo Mártir. Pois fiquemos aqui!
 
Dali a pouco tempo, a povoação de S. Vicente era uma realidade. Casas pequenas em redor de um humilde santuário formavam a aldeia recém-nascida. Em santa paz viveram ali esses cristãos, durante muitos anos. Isolados, sem se intrometerem com os seus vizinhos mouros, estes acabaram por ignorá-los também, deixando-os em sossego. Mas D. Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, entrou em guerra com os mouros do Algarve. E então, desesperados, estes vingaram-se nos cristãos de S. Vicente. Entraram na aldeia e arrasaram tudo, levando cativos os cristãos.
De novo o tempo rodou. Passaram cinquenta anos, meio século de lutas, com vitórias e derrotas de parte a parte. Mas D. Afonso Henriques conquistou Lisboa e fez vários prisioneiros. Um dia, um cavaleiro veio dizer ao rei:
— Senhor! Sabeis que entre os prisioneiros existem cristãos cativos?
O rei franziu as sobrancelhas:
— Que dizeis?
— É certo, Senhor! Foram derrotados nos Algarves.
— Como?
— Sem luta! Viviam lá pacificamente, junto ao promontório...
— Como foram lá dar?
— Creio que por naufrágio. Mas um dos homens pediu para falar-vos.
— Pois trazei-o à minha presença.
Dentro de pouco tempo, o cavaleiro voltou com um velho muito alquebrado, mas de olhar brilhante. O rei interrogou-o:
— Como é possível estardes entre os Mouros?
O velho retorquiu humilde, mas com firmeza:
— Senhor, éramos cativos dos Mouros e eles trouxeram-nos para combater os vossos exércitos!
— Cristãos contra cristãos?
— Não seria a primeira vez!
O rei olhou firme o homem que assim ousava falar e perguntou:
— Que éreis antes de cair nas mãos dos Mouros?
— Era deão em Valência. Quando os Árabes chegaram a Espanha, embarcámos com a relíquia do mártir S. Vicente a caminho de Oviedo. Mas quis Deus que fôssemos obrigados a desembarcar junto ao promontório Sacro, onde fundámos a aldeia de S. Vicente. Porém quando vós, Real Senhor, descestes sobre os Algarves, os mouros vingaram-se nas nossas casas e nas nossas gentes!
Interessado, D. Afonso Henriques indagou:
— E o corpo do mártir?
— Eu mesmo o enterrei.
— Onde?
— Na aldeia de S. Vicente. Eles desconhecem o que lhe fizemos.
— Quem sabe mais do segredo?
— Só eu e mais dois, um dos quais não terá muitas horas de vida. Eu também estou velho, Real Senhor. E queria pedir-vos a grande mercê de uma promessa real.
— Que desejais?
— Ide vós mesmo buscar o corpo de S. Vicente e trazei-o para lugar seguro. Só assim morrerei descansado.
— Prometo. Mas quero levar-vos comigo.
Logo uma trégua com os Mouros foi feita pelo rei de Portugal. E um navio partiu de Lisboa até ao cabo de S. Vicente. Porém, antes que chegassem, o deão falecera subitamente, sem ter indicado o local onde estava sepultado o corpo do mártir. Um tanto confusos, foram até às ruínas do antigo templo, e aí viram que um bando de corvos sobrevoava certo lugar.
Uma luz súbita iluminou o cérebro dos que procuravam a sagrada relíquia. Escavando no sítio onde pousavam os corvos, foram descobrir o corpo num sepulcro cavado na rocha, oculto às vistas de todos. Retiraram o corpo do santo, trouxeram-no para o navio e regressaram a Lisboa.
Mas dois dos corvos que haviam ficado de guarda ao sepulcro de S. Vicente acompanharam-nos durante toda a viagem. Depositado na igreja de Santa Justa, ali se conservou o corpo do mártir enquanto o não trasladaram para a Sé. E as armas de Lisboa ainda hoje dão testemunho deste caso singular, que os eruditos não atinam em decidir se se trata de uma fabulosa lenda ou de urna verídica história.

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume IV, pp. 153-157
Place of collection
Sagres, VILA DO BISPO, FARO
Narrative
When
12 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography