APL 2823 Lenda da Mal-Degolada

Perdem-se na bruma do tempo o dia, o mês ou mesmo o ano em que esta lenda teve origem. Todavia, um nome existe. Um nome que ficou a ser murmurado de geração em geração: Rui Mendes. Mas quem era Rui Mendes? Um fidalgo poderoso, cavaleiro e herói das batalhas contra os Sarracenos. Era alto, bem constituído, rosto atraente, olhar profundo, e não contava mais de vinte e cinco anos.
Em terras de Ribeira Lima, não havia quem não conhecesse D. Rui Mendes. Homens e mulheres, todos diziam que para o jovem castelão não havia corpo de infiel que a sua espada não acutilasse, nem coração de mulher que os seus olhos não prendessem.
Um dia, porém, o belo fidalgo deixou de aparecer. Não mais o viram passar na sua carreira, esporeando o cavalo e desafiando o próprio vento. Nem nas festas dos castelos vizinhos as mulheres ouviam a sua voz quente. Nem nas caçadas ao javali os homens admiravam a sua destreza e bravura. Que teria acontecido a D. Rui Mendes? Desaparecera como o fumo das chaminés. Seria o vento que o teria levado? Tê-lo-iam morto? Quem e como?...
A tanta pergunta, em que à curiosidade se juntava o anseio, respondia apenas o silêncio, o mistério, que fazia agora de D. Rui Mendes uma figura quase irreal.
Contudo, quem ao cair da noite se introduzisse numa quinta próxima do castelo de D. Rui, ficaria logo de posse do mistério. Ali, havia uma fonte muito bonita, de água límpida e fresca. Junto à fonte, uma torre. Circulando a torre, árvores frondosas pareciam querer libertá-la de olhares profanos. Era nessa estranha torre que D. Rui Mendes escondia o seu segredo, o seu tesouro: Tagilda, a formosíssima moura de olhos verdes cor do mar!

A luz prateada do luar tornava quase irreal o rosto perfeitíssimo da bela Tagilda. Fitando o seu bem-amado, escutava deliciada as suas frases de amor. Mas a luz da manhã começava a ter ciúmes da Lua, e esforçava-se desesperadamente por dissipá-la. Então, D. Rui Mendes compreendeu que eram horas de partir. Beijou a mão da sua bem-amada. Como ela o olhasse com tristeza mal contida, declarou-lhe:
— Tagilda! Como gostaria de viver aqui, sempre a vosso lado!
Ela sorriu-lhe com ternura.
— O vosso mundo reclama-vos, bem sei.
Subiu de calor a confissão do cavaleiro.
— Hoje o meu mundo sois vós, pois tudo representais para mim!
E com ansiedade:
— Sois feliz, Tagilda?
Olhou-o a jovem com arrebatamento.
— Meu senhor... A minha única felicidade é a que leio nos vossos olhos!
A admiração encheu o olhar e a voz do jovem fidalgo.
— Tão nova, tão bela, e conseguis ser feliz vivendo horas seguidas encerrada nesta torre, apenas na companhia de duas aias?...
— Senhor... Eu só vivo as horas que passais junto de mim!
Ele mordeu os lábios. Ficou subitamente preocupado. Olhou a manhã, que conseguira já apagar a luz prateada da Lua.
— Ouvi bem o que vos digo, Tagilda. Se me demoro aqui poucas horas e se vos trago escondida nesta torre, não é por me envergonhar da vossa condição de moura, pois me orgulho do amor que vos inspirei.
Encheu-se de surpresa o olhar da jovem sarracena. E indagou:
— Então, senhor, por que me afastais do mundo?
— Porque vos amo ardorosamente e tenho ciúmes do próprio ar que respirais!
O alarme alastrou-se na expressão da jovem. Alarme e incompreensão.
— Ciúmes? Mas se vos pertenço inteiramente…
Sorriu D. Rui Mendes. Atraiu a si o corpo esbelto da jovem moura.
— Sois demasiadamente linda, compreendeis? Demasiado bela. Quase representais uma afronta à própria beleza feminina! Por isso tenho medo, muito medo, Tagilda!
Sem poder ver o rosto do seu senhor, porque ele a retinha agarrada a si, mas auscultando-lhe as pulsações do coração, ela perguntou:
— Tendes medo? E de quê, meu senhor?
— Das invejas e das intrigas da corte!
Ela deixou-se abraçar ainda mais. Fez-se um pequeno silêncio. Depois, meigamente, a jovem tornou:
— Pois bem, meu senhor: se assim é, deixai-me ficar aqui para sempre. Este local é tão belo! Quando partis, fico a ouvir o cantar alegre dos passarinhos. Às vezes, chego a chorar de felicidade!
— E antes de eu chegar, que fazeis? 
— Pergunto mil vezes às estrelas se viram pelo caminho o corcel com o meu senhor. E se elas dizem sim, o meu coração cavalga como ele.
— E ficareis aqui sempre encerrada?
— Não existe cativeiro onde está o vosso amor!
— Pois tereis sempre a minha afeição desmedida! Quero-vos mais do que a mim mesmo! Quero-vos com loucura, acreditai! Juro-vos que tereis o meu amor para além da morte!
Ela estremeceu. Afastou-se para o olhar.
— Senhor, não faleis em morte quando a vida nos sorri!
D. Rui Mendes acariciou a jovem com ternura.
— Minha querida Tagilda! A morte existe desde que a vida surgiu. Tenho-a dado a muitos do vosso sangue e religião...
Um arrepio percorreu o corpo da jovem.
— Senhor, por que me falais em tal, constantemente?
— Para vos habituar a essa ideia. Quero que nunca vos arrependais do vosso amor. Quero que o vosso pensamento seja só meu. Que as vossas palavras de carinho sejam só para mim.
Tagilda sorriu. Olhou lentamente a aurora brilhante de luz, radiante de beleza. O seu olhar vagueou um momento pelo espaço que se divisava da janela da torre. E perguntou, por fim:
— Senhor... Não admitis rival no meu pensamento?
Ele afastou-a quase com rudeza. Perscrutou-lhe o rosto e exclamou, impetuoso:
— Disso dependerá a vossa vida!
Tagilda suspirou fundo. Tornou a olhar a luz dourada da manhã.
— Senhor... Se alguma vez o meu pensamento não for só para vós, podeis estar certo que em nada diminuiu a minha afeição.
O cavaleiro franziu as sobrancelhas.
— Explicai-vos melhor!
Ela sorriu:
— Breve o sabereis, senhor. Hoje... porém...
Ele agarrou-lhe um pulso.
— Ousais ter segredos para mim?
A dor fê-la empalidecer um pouco. Mas a sua voz voltou a ouvir-se, serena:
— Acreditai que o segredo que hoje guardo em nada vos molesta. Pelo contrário: só poderá honrar-vos.
— E por que insistis em não o revelar?
— Só mais um dia, senhor... Peço-vos!
Uma ruga profunda vincou-se na fronte do cavaleiro. Ficou por momentos olhando em silêncio a sua bem-amada. Depois, como quem toma uma súbita resolução:
— Bem... Já é tarde e tenho de partir. Mas amanhã quero ler claro no vosso pensamento. Peço-vos, pelo amor do Deus que venero, que não tenteis esconder nas vossas palavras o que vos vai na alma!
— Sossegai, meu senhor. Amanhã sabereis o meu segredo.
— E por que não hoje mesmo?
— Hoje não. Amanhã. Esperai, peço-vos!
— Existe mais alguém a quem tereis de pedir opinião?
Ela alarmou-se um pouco.
— Senhor, por favor, não insistais!
D. Rui Mendes deixou que a ruga da sua fronte se acentuasse mais ainda. Mordeu de novo os lábios. O ciúme começava a dominá-lo. Voltou rudemente as costas a Tagilda e correu a buscar o seu cavalo.
 
A manhã estava clara, prometendo um dia de sol radioso. Desesperado, D. Rui deu de esporas ao cavalo. O corcel correu pela estrada, numa onda de poeira. Sem afrouxar o galope, o fogoso cavaleiro ia ruminando na forma de vigiar aquela que o enlouquecia de amor. Formou um plano. Mas o andar monótono do tempo irritava a sua impaciência. Nunca um dia lhe parecera tão longo! Nem mesmo quando o amor parecia abrasar-lhe o peito e ele tinha de esperar pelas horas caladas da noite...
 
A noite descera, enfim. Noite cálida, de uma Primavera quente a roçar o Verão. Noite minhota, em que a orquestra das cigarras punha nota alegre, mas estranha, no ar que passava mansinho, vindo por horizonte perfumados.
Tagilda, a bela Tagilda, olhou da sua torre a fonte que estava próxima. Um vulto parecia desenhar-se, pois a Lua voltara a pratear a torre e a pôr reflexos mais vivos sobre as águas do mar. Não esperou mais a jovem moura. Desceu apressada, e correu ao encontro do vulto que dir-se-ia aguardá-la. Mal a viu, o vulto adiantou-se.
— Então, minha filha! Pareces aflita…
Baixo, mas apressada, a jovem elucidou:
— Ele desconfia… Desconfia de mim!
— Então é preciso dizer-lhe a verdade.
— Vou contar-lhe hoje mesmo o nosso segredo, mas precisava da vossa permissão…
— Sim, falai-lhe de mim. E principalmente do Deus que já conheceis.
Tagilda suspirou:
— Oh! Como eu ignorava o deleite que existe na Fé do meu bem-amado! Fostes vós, padre, que ma ensinastes. E o bom Jesus saberá perdoar-me e receber-me.
— O bom Jesus já vos ama como se fôsseis cristã. Conhecedor de todos os nossos pensamentos, Ele sabe quanto sois digna do Seu perdão. Pensais muito n’Ele?
— Em D. Rui Mendes?
— Não! Em Jesus?
Tagilda sorriu. Olhou as estrelas, que o luar teimava em esconder.
— Meu padre... Jesus e o meu cavaleiro andam a par no meu pensamento!
Foi a vez do padre sorrir. Tentou explicar:
— Minha filha! O primeiro mandamento é amar a Deus sobre todas as coisas. Não o esqueçais!
Suspirou de novo, a jovem.
— Pois creio que aí reside o meu único e grande receio de não vir a ser uma boa cristã. Amo tanto o meu senhor!
— O vosso único Senhor é Deus, minha filha!
— E D. Rui?
— D. Rui será o vosso esposo, quando fordes cristã. E espero que não demore muitos dias.
— Estou tão contente! Vai ser uma grande surpresa para D. Rui.
— Sim, será. Mas é conveniente eu ir andando. O vosso cavaleiro deve estar a chegar e não gostaria decerto de vos ver aqui.
— Ide, então. Mas amanhã de manhã mandarei chamar-vos. Quero ver-vos à luz do dia! Esta será a última vez que nos encontramos às escondidas!
Neste mesmo momento, um vulto que se havia aproximado vagarosamente por entre o arvoredo estacou. Ouvira as últimas frases. E num gesto de fúria incontida, espada em riste, caiu sobre a jovem moura, derrubando-a com um golpe na garganta. Um grito soou. Outro se lhe seguiu. E logo o padre correu ao encontro do cavaleiro, gritando com desespero:
— Que fazeis, senhor?
D. Rui Mendes vociferou:
— Justiça! E agora preparai-vos também!
O padre ficou hirto na presença do fidalgo.
— Olhai-me bem, senhor! Depois do que fizestes, ousais ainda falar em justiça?
O cavaleiro abriu os olhos num espanto. A fraca luz da Lua não havia permitido distinguir e reconhecer o homem com quem Tagilda falava. Soltou um grito de horror.
— Padre! Pois sois vós?
Num lamento, o sacerdote olhou o corpo ensanguentado da jovem moribunda, voltando-se depois para D. Rui.
— Minha pobre filha!... Matastes uma futura cristã!
O cavaleiro ajoelhou. Não tinha lágrimas para chorar, mas a dor parecia querer dilacerar-lhe o peito. 
— Tagilda, meu amor, perdoa-me!
Ela tentou abrir os olhos. Num supremo esforço, murmurou:
— Perdoo-vos… meu belo cavaleiro! Padre... explicai-lhe...
Mas já o padre, vendo que a moura poucos momentos teria de vida, apressou-se a prestar-lhe os derradeiros socorros.
— Esperai um pouco! Vou tornar-vos cristã. Temos a água da fonte.
O padre tomou nas mãos em concha uma porção da água que corria mesmo ao lado. E aspergindo a cabeça de Tagilda, disse:
— Maria... Preparai-vos para entrar no reino dos Céus, pois eu vos baptizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo!
Quase num sopro, D. Rui Mendes acrescentou:
— Ámen! 
O luar brilhou mais vivo. Maria agonizava. Com voz quase extinta, balbuciou:
— Adeus!
D. Rui apertou-lhe as mãos.
— Maria, meu amor, como poderei agora viver sem ti? Não me deixeis!...
— Vou... para o vosso… rival...
O sangue de Maria deixou de correr. A vida extinguira-se-lhe. Como se não tivesse consciência disso, D. Rui molhava-se no seu sangue abraçado ao seu corpo. Pedia-lhe, num desespero:
— Perdoa-me, não me deixes enlouquecer! Por que não gritaste a verdade? Por que não me avisaste? Responde-me, Maria!
Mas a jovem tinha partido deste mundo. D. Rui continuava gritando:
— Por que não me disseste a verdade?
Como resposta, soou apenas a voz do padre:
— No Reino da Verdade  entrou agora a que tanto vos amou. Pedi antes a Deus perdão para o vosso tresloucado acto.
D. Rui Mendes baixou a cabeça. Dos seus olhos começaram a cair, finalmente, grossas lágrimas. Murmurava como louco:
— Nunca mais a verei! Nunca mais!
Assim, de joelhos, o cavaleiro em nada se parecia com o soberbo D. Rui Mendes. Todo o seu espírito fogoso abatera. A sua cabeça, outrora tão altiva, estava curvada para a terra empapada do sangue da sua vítima.
Do alto, a Lua continuava, silenciosamente, a iluminar com a sua luz de prata mais uma tragédia de amor.
 
Diz a lenda que D. Rui Mendes viveu alguns anos mais, espalhando bem pela terra. E que em noites de luar, quando as estrelas se escondem sob esse manto de prata, pelas estradas de Ribeira Lima passa por vezes uma carruagem reluzente, puxada por seis cavalos brancos e conduzida por uma linda mulher de tez morena e olhos verdes cor do mar...

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume III, pp. 105-110
Place of collection
Facha, PONTE DE LIMA, VIANA DO CASTELO
Narrative
When
12 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
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Bibliography