APL 2788 Lenda da Porta da Traição

Noite escura, sem luar a iluminar os campos. Cheiro a terra molhada da chuva que havia caído, impertinente, toda a tarde. Vento assobiando, como ave agoirenta a profetizar tragédias. Mas só ele gritava a sua fúria nessa noite sem lua, pois tudo o mais era silêncio.
No acampamento de cristãos, os homens tinham recolhido às suas tendas. Apenas a guarda ficara alerta, atenta ao menor ruído, que as árvores, quase nuas, pudessem transmitir no seu lamento de invernia.
Na tenda real, sem riquezas de assombro mas em destaque sobre as outras, D. Afonso Henriques meditava. A seu lado, Gonçalo Mendes da Maia, quase estático, não se atrevia a perturbar o rei, embora pensasse que era tempo de recolher. Precisavam ambos descansar. Algumas horas de sono reparador ser-lhes-iam benéficas, como retempero de forças. Todavia, o rei parecia não querer dormir, nem ficar só. Duas ou três vezes olhara para Gonçalo, como se fosse a dirigir-lhe a palavra. Mas logo desviara o olhar, embrenhando-se de novo em absorventes pensamentos. De súbito, porém, olhou com energia o seu homem de confiança. E desabafou:
— Estou cansado desta espera! O cerco ao castelo foi iniciado em Novembro do ano passado e já estamos no fim do dia 10 de Janeiro!
Gonçalo Mendes respirou, por se ver livre desse forçado silêncio.
— Bem sabeis, Senhor, que os mouros têm oposto grande resistência. E segundo me consta, a despensa deles ainda está bem fornecida... Não os faremos render, nem pela fome, nem pela sede!
D. Afonso cerrou os punhos.
— Dois meses! Dois meses quase perdidos!
D. Gonçalo decidiu-se a encorajar o seu rei.
— Senhor! Na minha humilde opinião deveríamos atacar em massa, sem mais delongas.
O rei português elevou os seus ombros largos e concordou.
— É isso mesmo, Gonçalo Mendes! Teremos de atacar com toda a força e quando menos esperarem! Amanhã mesmo poremos o exército em acção e na madrugada seguinte cairemos sobre o castelo, numa luta sem tréguas! Agora, que temos Lisboa e Santarém, não poderemos perder Óbidos!
— É precisamente essa a minha opinião, Senhor. Há muito que os nossos homens para aqui andam sem grandes lutas e essa inacção perturba-os.
— Pois breve terão muito que fazer! Estou decidido, Gonçalo! Pensai no que vos disse e recolhei à vossa tenda. Preciso descansar agora, porque amanhã o dia será movimentado. Chamai-me logo que o sol rompa!
Com uma reverência, Gonçalo Mendes disse apenas:
— Ficai descansado, Senhor.
Depois, sem mais acrescentar, retirou-se para a tenda situada ao lado da do monarca português. Nos campos, a escuridão continuava escuridão, e o vento, sempre vento, passava sem cansaço, num bailado infernal...
 
Naquela noite em que só o vento uivava, em que só ele era vida na treva que invadia a Terra, o sono fechou os olhos ao fidalgo português Gonçalo Mendes da Maia. Um sono forte, profundo, que só se dá ao necessitado de descansar. E o tempo, girando com o vento, mas se queixumes nem risos, caminhou sereno, no seu passo cadenciado de quem não tem pressa de chegar — por saber de antemão que chega sempre na hora exacta. De súbito, por entre a bruma do seu consciente ainda mal acordado, uma voz sobressaltou o fidalgo português. Uma voz que soava perto dele e se repetia na escuridão. Ergueu-se o Lidador levando a mão à espada e perguntou:
— Quem está aí?
Ouviu de novo a voz, entre medrosa e decidida:
— Perdoai, senhor, se vos acordei... mas preciso falar-vos!
— Tendes voz de mulher ou estou a sonhar?
— Acendei um archote, mas com cuidado... Sou mulher e venho desarmada.
— Pois ficai onde estais. Esperai um pouco.
Acendeu rapidamente um archote e viu um rosto moreno, de olhos azuis, que o fitavam amedrontados.
— Como vedes, não poderei molestar-vos!
— Que fazeis aqui?
— Venho por bem!
— Donde vindes? Quem sois? Como vos deixaram passar? Vamos, respondei depressa!
A jovem sorriu e descobriu mais o rosto até aí quase oculto, tão enrolada estava num manto todo negro. Respondeu, agora mais à vontade:
— Senhor, fazeis tantas perguntas que nem sei por onde começar.
— Dizei primeiro como chegastes aqui!
— Atravessei o campo sem luz e aproveitando o temporal.
— E donde vindes?
— Do castelo.
Surpreendeu-se o Lidador:
— Do castelo? Então sois moura...
— Não o sei bem. Dizem uns que sim… outros que nâo. De qualquer forma, desde que me conheço vivo com eles, pois nunca vi os meus pais.
O fidalgo olhou-a, desconfiado.
— Podeis ser uma enviada dos mouros... Lembro-vos que estou alerta e não hesitarei numa medida extrema! Que desejais?
— Falar convosco e com o vosso rei.
— Agora?
— Assim é necessário.
— Vindes pedir tréguas?
— Eles não sabem que estou aqui.
Gonçalo Mendes enervou-se.
— Mentis! Como conseguiríeis sair do castelo sem a sua conivência?
— E como consegui entrar nesta tenda sem a vossa ajuda?...
O Lidador mordeu os lábios.
— Acreditai que esse facto preocupa-me. Verifico que a nossa vigilância não é tão segura como a imaginava. Terei mais cautela, de futuro.
E, num sobressalto:
— Esperai! Acaso estareis a entreter-me enquanto um dos vossos entrou na tenda d’el-rei Afonso?...
A jovem abanou a cabeça.
— Acalmai-vos! Se assim fosse, não vos teria acordado. Dormíeis profundamente.
Gonçalo Mendes aquiesceu.
— Tendes razão. Dizei então o que quereis.
— Que me leveis à presença do vosso rei.
— Já?
— O tempo urge para mim e para vós!
— E não quereis dizer-me qual a comunicação que tendes a fazer ao meu rei?
— Ouvi-la-eis quando estivermos juntos. Asseguro-vos que o tempo urge!
Gonçalo Mendes olhou a jovem à luz plena do archote. Viu os seus olhos claros, de uma limpidez sem mácula. Viu o seu rosto sereno como o de quem não teme. Decidiu-se.
— Pois vem comigo! O que vou fazer é contra todas as regras. Ai de ti, se pretendes enganar-me! Não sabes bem quem eu sou, nem de que sou capaz!
A jovem não baixou o olhar:
— Deveis, na guerra, valer tanto como o vosso rei!
Gonçalo Mendes olhou a sua espada, e mostrou-a à jovem.
— Olha bem para ela! Só bebe sangue de sarracenos! E é insaciável, acredita!
E decidido:
— Vamos!
Ela assustou-se, vendo Gonçalo Mendes sair afoitamente com o archote na mão.
— Cuidado com a luz! Ocultai-a sob esta capa! Não quero ser vista. Terei de seguir à risca as instruções.
Foi a vez de Gonçalo Mendes mostrar desconfiança e embaraço.
— Ah! Então confessais que vindes do mando de alguém! Quem vos mandou aqui?
— Não sei!
— Não sabeis? Tereis de o dizer ou matar-vos-ei!
Mostrou certo medo, a expressão da jovem desconhecida.
— Ele... ele disse que me salvaria se cumprisse sem falhas a missão de que me incumbiu!
— Ele... Mas quem é ele? Mouro? Cristão?
— Já vos disse que não sei! Mas não deve ser mouro.
— Porquê?
— Não sei bem... Talvez pelo que ele me disse.
— E que vos disse ele?
— Quero repeti-lo na presença do vosso rei.
Gonçalo Mendes abanou a cabeça.
— Que estranha criatura! Vamos, entrai! Vou acordar o meu rei e senhor. Mas a vossa vida responderá pela dele!
 
Mal refeito ainda da surpresa de ver na sua frente Gonçalo e uma jovem desconhecida que pretendia falar-lhe, D. Afonso Henriques perguntou, meio desconfiado:
— Que me quereis então?
A jovem foi breve.
— Desejo comunicar-vos o que ele me disse.
Surpreendeu-se ainda mais D. Afonso Henriques.
— Ele? Mas... ele, quem?
Ela parecia sincera.
— Nunca o vi. Nem ouvi o seu nome... Esqueci-me de lho perguntar!
O rei português mostrou-se severo.
— Se não o vistes como acabastes de afirmar, como havíeis de perguntar-lhe o nome?
A jovem não deu mostras de receio.
— Bem... Vi... e não vi!...
Gonçalo Mendes interrompeu-a.
— Explicai-vos melhor e depressa, antes que vos entregue aos meus soldados!
Desta vez o rosto da jovem exprimiu terror.
— Não! Não denuncieis a minha presença! Vou explicar tudo. Há três noites seguidas que em sonhos me aparece um homem com umas barbas castanhas, ainda novo, olhar e voz doces, envolto num manto branco. Chama pelo meu nome e diz-me sempre o mesmo.
D. Afonso Henriques mostrou-se subitamente interessado.
— E que vos diz ele?
— Deixa o teu leito e vai, encoberta pela noite, ao acampamento dos meus homens...
Gonçalo Mendes interrompeu-a.
— Ele disse... «dos meus homens»?
A jovem concretizou:
— Sim. Estou a reproduzir exactamente o que me foi dito.
D. Afonso Henriques ordenou ao Lidador:
— Deixai-a falar sem interrupções! Então ele ordenou que viésseis ao acampamento dos seus homens...
— Sim. E acrescentou: Eles estão para lá das muralhas. Procura primeiro a tenda que fica ao lado direito da do rei Afonso. A do rei, é a maior e tem uma cruz. Acorda o cavaleiro que lá dorme e diz-lhe que te leve à presença do rei. Depois, dirás ao rei Afonso que reúna os soldados e os industrie para um ataque de surpresa na parte fronteiriça do castelo, logo que a manhã chegue. Entretanto, Gonçalo Mendes irá com dez homens pela parte oposta...
Sem se conter, Gonçalo Mendes voltou a interromper a jovem.
— Como sabe esse desconhecido o meu nome?
D. Afonso sorriu.
— Acalmai-vos, Gonçalo Mendes! Também sabe o meu e não me afligi! Pelo contrário. Lembrai-vos que esta jovem não nos conhece e repete o que lhe disseram em sonhos.
Gonçalo respirou fundo, antes de murmurar quase para consigo próprio:
— Que estranho é tudo isto!
O sorriso de D. Afonso Henriques alongou-se mais.
— Sim, é estranho para vós. Para mim, não se me oferece tão confuso...
E numa voz mais enérgica:
— Continuai, donzela, a vossa narração, já pela segunda vez interrompida. Comunicai-me o que mais vos disse o homem novo, de olhos e voz serenos.
Mais à vontade, a jovem prosseguiu:
— Sorrindo-me, num doce sorriso, ele recomendou-me: Cumpre sem hesitações o que te ordeno. Voltarás para o castelo e ficarás, encoberta, nessa porta oposta à direcção do combate, para onde todos os mouros irão correr fazendo frente às tropas do rei Afonso. Então, esperarás os homens de Gonçalo, os quais entrarão pela porta que tu irás abrir. Se tudo correr como te ordeno que faças, Óbidos será dos cristãos e tu serás salva!
Silenciou a jovem. D. Afonso Henriques perguntou então:
— É tudo quanto te disseram?
Ela afirmou:
— Sim. Mas há três noites seguidas que isto me acontece!
— Porque não te resolveste logo a vir aqui?
— Porque tive medo!
— E porque vieste hoje?
— Ele insistiu e sorriu-me com tanta bondade, que eu ganhei confiança e saí.
Descrente, Gonçalo Mendes abanou a cabeça.
— Senhor! Isto não passa de uma emboscada!
Teve um sorriso enigmático o rei de Portugal. Depois, lentamente, como quem olha o passado na hora presente, sentenciou:
— Gonçalo Mendes! Sois um homem sem fé? Depois de Ourique não me atrevo a duvidar. Tudo pode acontecer!
Gonçalo não queria contrariar o seu rei; mas o caso era para ele tão problemático, que lhe deu ânimo para fazer nova pergunta:
— E esse homem, Senhor, esse estranho homem que se diz dos nossos, aparece em sonhos a uma mulher que vive com o nosso inimigo, fala em nossos nomes e obriga-a a vir ter connosco?... Não achais duvidoso? Quem será ele?
— Não calculais, D. Gonçalo? Só um Homem pode ser. Alguém mais do que nós...
Surpreendido, D. Gonçalo, perguntou:
— Mais do que vós?... só Deus!
Sorriu D. Afonso e, sem mais acrescentar, voltou-se para a jovem:
— Vai, donzela, para o teu posto! Quando a manhã surgir, lá encontrarás Gonçalo Mendes e os seus dez homens de confiança!
 
E conta a velha lenda que tudo aconteceu como havia sido dito na tenda do rei Afonso! Mal a luz da madrugada veio roubar à treva o contorno do monte e do castelo, as tropas do rei de Portugal, reunidas em massa pelo lado mais acessível, prepararam-se para atacar, chamando assim para esse local toda a atenção do inimigo. Entretanto, Gonçalo Mendes da Maia e os seus homens encetaram a subida difícil ao castelo, no ponto de mais perigoso acesso, ocultando-se por entre as ginjeiras. O vento amainara sobre a manhã. A chuva também não ameaçava cair. Apenas o frio continuava, mas os homens de el-rei Afonso nem davam por ele, tão renhida era a luta.
Quando o Lidador, depois de uma escalada difícil, chegou ao cimo do monte, junto ao castelo encontrou a porta indicada, guardada apenas por dois soldados mouros, que pareciam adormecidos. Não viu mais a donzela misteriosa que descera ao acampamento cristão. Mas também nem teve tempo para pesar o facto. Passando para dentro das muralhas, depressa se gerou a confusão entre os defensores do castelo de Óbidos, os quais abrandaram na defesa por onde D. Afonso atacava, na ânsia de inutilizar o esforço de Gonçalo Mendes. E esse abrandamento na resistência do lado mais atacado produziu o rápido acesso de D. Afonso Henriques e a sua completa vitória.
Alvoroçados com esse desfecho inesperado, os mouros gritavam uns para os outros, mostrando uma das portas do castelo de Óbidos:
— Foi por ali que eles entraram! Foi por aquela porta! Houve traição!
E esse grito que o vento frio de Janeiro levou de monte em monte, ficou, segundo a lenda, a dar nome à porta que franqueara a entrada dos cristãos. Porta da Traição, assim ficou chamada! Porta donde se descortinam as escarpas do monte, vencidas pela audácia de Gonçalo Mendes, e o vale do Arnoia, majestoso e belo, doirado pelo sol, quando o Inverno se vai para outras terras distantes...

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume II, pp. 233-239
Place of collection
ÓBIDOS, LEIRIA
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1148
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