APL 2770 Lenda de No Ar Geme Ela

Sessenta e nove anos antes de Cristo nascer, César começava uma jornada decisiva para a sua carreira, pois foi precisamente nessa altura que ele surgiu na Espanha como simples questor, primeiro degrau da imponente escadaria que havia de subir... Passou, de novo, à Itália e, quando regressou à Península, vinha já investido no cargo de pretor. Foi então que o seu génio ambicioso se passou a revelar com maior intensidade e precisão, ambição essa que o levaria ao mais alto pedestal de Roma.
Entretanto, na Lusitânia, César quis forçar os habitantes dos montes Hermínios a deixarem os cumes daquelas serras nas quais estavam instaladas as suas habitações, para descerem à planície, onde ele poderia mais facilmente vigiá-los. Mas os montanheses, habituados ao ar puro da montanha, à liberdade do vento girando como único senhor, à vida pacata mas sua, ao seu labutar do dia-a-dia, sem outros quaisquer encargos que o do sustento generosamente oferecido pela terra e pelos rebanhos, esses montanheses fortes de vontade e sadios de corpo e alma sentiram-se afrontados com tão súbito e estranho pedido! Deixar os cumes da montanha e descer à planície, onde o pó dormiria com eles e onde o vento não correria com tanta liberdade? Para quê? Deixarem de olhar o horizonte largo para se encurralarem em baixo à mercê da vontade de um invasor?... Tal mudança não poderia agradar aos montanheses. E resolveram abandonar as suas moradas, para fugirem ao domínio do grande César. E logo se reuniram em assembleia magna, e logo também decidiram partir, dividindo-se em dois grupos para desviarem suspeitas. Os primeiros seguiram o caminho da Galiza. Mas, descobertos, foram apanhados e quase todos mortos por desobediência à lei de Roma. Restava o segundo núcleo, talvez destinado à mesma sorte que o primeiro. É sobre este segundo pelotão — chamemos-lhe assim — que a nossa lenda tece as suas malhas, onde talvez exista mais verdade que fantasia...
O ar fresco da tarde brincava com os cabelos de Brunilde. Os seus olhos bonitos — os olhos mais belos de quantos havia em redor! — buscavam com ansiedade o horizonte distante. E no seu cérebro, cheio de pensamentos tumultuosos, formavam-se imagens gigantescas e bárbaras, onde César, feito algoz, matava ao desbarato os seus irmãos dos Hermínios que tentavam a liberdade! E enquanto o seu olhar buscava na bruma da tarde as cenas de tragédia que ela imaginava à sua maneira, as lágrimas corriam-lhe silenciosas pelo rosto pálido, o rosto de feições mais delicadas de quantas se enxergavam por ali.
Todavia, Brunilde não estava só. Alguém a espiava. Alguém, que sofria como ela, esperava apenas o momento oportuno para lhe poder falar. Esse momento chegou. Desviando o olhar que parecia irremediavelmente preso desse horizonte distante, a jovem lusitana reparou em Mário, o montanhês cuja fama de bravura desconcertava os próprios romanos. Secou as lágrimas à pressa e tentou sorrir-lhe.
— Desculpa esta fraqueza, Mário!
Ele aproximou-se, com tanta doçura na voz que parecia quase um milagre naquele corpo de atléticas formas, embora de feições agradáveis.
— Meu amor! Compreendo o teu sofrimento. Os que partiram eram também nossos irmãos!
A donzela suspirou antes de perguntar:
— E... quando partimos nós?
— Em breve. Venho justamente falar contigo sobre esse assunto... Está já tudo assente.
— E... não nos acontecerá o mesmo?
Mário meneou a cabeça. Ficou um momento olhando a sua linda noiva. Depois, pegando-lhe com ternura numa das mãos, tentou dar-lhe alento.
— Nada temas! Tudo correrá bem desta vez.
— Mas... se nos apanham? Os outros morreram quase todos por ordem de César!
Ele acariciou-lhe os cabelos.
— Desta vez ninguém nos apanhará! Estamos preparados, compreendes? Organizados!... O nosso plano não poderá falhar!
A jovem suspirou:
— Também os outros tinham um plano...
Mário meneou a cabeça, franzindo as suas espessas sobrancelhas.
— Sim, meu amor, os outros também tinham um plano. Mas alguém os denunciou!
— Quem?
— O pequeno Januário! Tinha só treze anos. Não suportou as torturas a que esses malvados o submeteram. E confessou a fuga e deu-lhes o itinerário certo!
— Coitado! Quem sabe o que ele sofreu! Mas se o mesmo acontece a algum dos teus homens?
Mário fechou um dos punhos, num acesso de raiva. A sua voz saiu surda.
— Espero que não nos apanhem! E... ninguém conhece o meu plano, que é bom... muito bom!
— Todos pensam o mesmo...
Mário encarou a sua noiva, de frente.
— Brunilde! Porque não hás-de acreditar? Se todos duvidássemos de tudo, estaríamos de antemão vencidos! E nós não queremos que eles nos toldem a vida nem a liberdade, não é assim, minha doce noiva das montanhas?
A jovem acenou com a cabeça, em sinal afirmativo. Mário animou-a.
— Vamos, sorri com confiança! Eu preciso de ti e de ti confiante na nossa vitória!
Uns olhos lindos interrogaram-no com surpresa:
— Precisas de mim?
— Sim. Tens uma nobre missão a cumprir, mas é necessário que acredites no resultado dos meus planos!
Ela encarou-o, mais animada.
— E que missão me destinas?
— Levar a porto seguro muitas destas almas que são nossos irmãos de sangue e de fé!
— Como o farei?
— Ouve: bem sabes que esses malditos romanos avançaram sobre este torrão que nos viu nascer, em vésperas do nosso casamento. Pois já que fomos forçados a adiá-lo, não quero todavia desligar-te do âmbito da minha vida. Só em ti confio, Brunilde! Só em ti! E não poderia confiar a mais ninguém o que te vou pedir.
— Conta comigo. Pelo cumprimento da nossa missão darei a vida, se tal for necessário!
Mário tomou-lhe de novo uma das mãos, que apertou entre as suas.
— Obrigado, meu amor! Mas não te peço a vida, demasiadamente preciosa para mim para que a possa perder. Peço-te apenas comunhão de ideal.
— Estou pronta a seguir-te!
— Seguirás, sim, mas conforme o meu plano: eu irei à frente com o grupo maior e tu partirás horas depois com as mulheres e as crianças.
— E quando partimos?
— Eu, amanhã de madrugada. Tu, só quando o Sol estiver a pino.
As lágrimas voltaram a aflorar ao rosto de Brunilde. O jovem montanhês olhou-a com interrogação. E a noiva sorriu-lhe por entre lágrimas.
— Choro agora de felicidade, por me ser possível ajudar-te!
Ele acariciou-a.
— Bem sei. Tenho tanta confiança em ti como em mim próprio. E agora escuta. Está aqui este mapa com um caminho traçado. Seguirás por ele em direcção ao rio Douro, destino ao mar. Aí estará alguém à tua espera com as barcas disponíveis e esse alguém te guiará à ilha onde nós já estaremos, decerto.
— E depois?
— Depois... nessa ilha — asilo dos Hermínios — saberemos lutar com os homens de César... se ele quiser luta!
Brunilde ergueu o seu olhar para o bravo montanhês. Olhar que trazia amor, carinho, admiração! Ele entendeu-a e beijou-a com ternura.
Depois afastou-a de si e suspirou fundo antes de despedir-se.
— Querida, até breve! Seremos fortes até ao fim!
O rapaz começou a afastar-se, fazendo-lhe um rápido adeus. Ela murmurou, de forma quase inaudível:
— Até breve!
Mas tomou novo alento e gritou quase:
— Confia em mim! Só não as levarei comigo se me tirarem a vida!
Mário parou quase assustado.
— Não fales em morte. A vida sem ti terá pouco sentido. Espero-te, Brunilde. Tem coragem!
Ela tentou sorrir-lhe. Um sorriso que mascarava o triste pressentimento que a oprimia desde a véspera. Queria dar-lhe ânimo para vencer! Queria que ele continuasse livre e forte, perpetuando a sua raça!
Mário recomeçou a andar. Ia-se afastando, embora olhasse para trás de quando em vez para lhe acenar um adeus. Brunilde, porém, já não sorria. Já não lhe era preciso mentir, porque o seu noivo já ia longe e não poderia distinguir a sua expressão aflita.
O vento continuava brincando com os cabelos da jovem lusitana. Um vento leve, fino, penetrante, desenvolto. Ela deixou-se ficar ali ainda por algum tempo, mesmo depois de uma penedia ter ocultado o seu bem-amado noivo. Ele seguia o seu destino. Ela tentaria seguir-lhe o rastro. E só no dia seguinte poderia dizer qual o momento na estrada da vida em que eles poderiam finalmente encontrar-se!
 
A manhã começou a despontar, entornando sobre a serra uma luz levemente rosada. Mário, já a postos com os seus homens, voltou a despedir-se da sua bem-amada e partiu a caminho do Douro. Entretanto, junto de Brunilde começavam a juntar-se grupos de mulheres e crianças, esperando apenas a ordem de marcha. Levavam mantimentos para o árduo caminho que havia a percorrer. Caminho onde muitos perigos
poderiam surgir. Perigos de toda a espécie, para mulheres praticamente indefesas. Mas era necessário fingir que a aldeia continuava povoada. E elas ali ficaram mais algumas horas, as suficientes para que os seus homens pudessem ir abrindo caminho.
O Sol subia no horizonte, no seu carro de fogo, e ia pondo manchas de luz na face que se lhe oferecia. Brunilde olhava o Sol numa fascinação de encantamento. Queria cumprir à risca o plano do seu noivo.
Algumas mulheres mais enervadas começaram a impacientar-se. Queriam partir! Partir sem demora no encalço dos seus homens! Esperar era para elas um suplício. Talvez até a possibilidade de tudo falhar. Mas Brunilde não podia nem queria dizer-lhes que, mesmo que a sua retirada ficasse sem efeito, era necessário, custasse o que custasse, que Mário conseguisse levar os homens a porto seguro.
Um burburinho começou a elevar-se. De várias bocas saíam gritos de impaciência:
— Vamos, Brunilde! Se tens medo de ir, diz-nos ao menos qual o caminho que nos levará aos nossos homens!
Mas Brunilde continuava silenciosa, olhando o Sol num encandeamento. E quando deu o sinal de partida, um corpo do exército romano começava a subir a montanha, lá em baixo, gritando-lhes que ficassem onde estavam!
Brunilde hesitou. Que fazer? De nada lhes serviria encetar uma corrida pela encosta: alguns dos romanos vinham a cavalo e em breve as apanhariam.
As mulheres gritavam agora imprecações contra os romanos e contra ela, Brunilde, que as não quisera atender, partindo mais cedo!
Com as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto, tentou acalmá-las com um gesto, enquanto os romanos se aproximavam cada vez mais. E falou-lhes, na sua voz fina mas segura:
— Irmãs dos Montes Hermínios! Nós não partiremos ao encontro dos nossos homens, porque os nossos inimigos vêm aí! No entanto, se tivéssemos partido mais cedo, mais cedo os encontraríamos e teríamos que lhes dizer para onde nos dirigíamos!
Um oficial romano que chegara junto do grupo, vendo Brunilde a falar às outras mulheres, colocou-lhe uma das mãos sobre um ombro, como a marcar a posse.
— Mulher! Vejo que comandas as outras que te escutam. Onde estão os homens desta aldeia? E porquê tanta mulher aqui reunida? Fala! Quero saber o que se está passando. Responde!
Brunilde respirou fundo. As lágrimas secaram-se-lhe como por encanto.
— Fazes tanta pergunta ao mesmo tempo, que nem sei por onde começar a responder-te.
Ele exasperou-se.
— Deixa-te de evasivas! De nada te servirá seres jovem e bela. Se pensas que ficamos rendidos às tuas graças, desengana-te!
Pálida, mas firme, a jovem lusitana respondeu:
— Ainda bem! Será menos um mal com que terei de lutar.
Ele gritou mais:
— Basta de conversa! Onde estão os homens destas montanhas? Vamos, responde, já que tomaste a direcção destas mulheres!
— Porque dizes que tomei a direcção?
— Porque elas estão aqui todas juntas à tua volta e olham-te como ovelhas em dia de temporal, buscando o abrigo do seu pastor.
Brunilde teve um sorriso triste.
— Assim o pastor as pudesse levar a abrigo seguro!
O romano tornou a exaltar-se.
— Então confessas...
Ela atalhou:
— O quê? Falo apenas do pastor, do rebanho e do temporal, segundo a imagem que tu mesmo buscaste.
— Acabemos com isto!
Deu uma ordem, que foi rapidamente cumprida:
— Soldados! Reúnam além, naquele acampamento, as mulheres e as crianças.
Voltou-se de novo para a rapariga.
— Tu vens comigo! Precisamos de conversar.
 
Duas horas e meia levou o romano a tentar fazer falar a jovem lusitana. Mas, como fosse impossível arrancar-lhe qualquer frase que o pusesse na pista dos fugitivos, levou-a consigo para o monte onde estavam acampados. Aí, vários romanos tentaram, também em vão, arrancar-lhe o seu segredo. Brunilde, ciosamente, escondera no seio o mapa que lhe dera Mário, sem conseguir um momento livre para o destruir. De súbito, ouviu-se uma ordem que a acalmou quanto à sorte do mapa:
— Tragam lume! Vamos queimá-la!
Enorme algazarra se ergueu à sua volta. Mas Brunilde agora já não se sentia a rapariguinha cheia de horríveis pressentimentos que Mário defrontara nas montanhas. Nesse momento ela sentia-se bem digna do amor do seu noivo e do respeito dos seus irmãos pela raça! Sorria quase.
Uma voz despertou-a do seu meditar:
— Vês o fogo? Começarei por te queimar os pés, ja que te dispunhas a fugir!
Depois, uma ordem autoritária:
— Vamos! Cheguem-lhe o fogo aos pés, mas amarrem-na primeiro!
A ordem foi executada sem perda de tempo. Quando as labaredas fizeram subir no ar um cheiro a carne queimada, o romano perguntou:
— Mulher! Para onde fugiram os montanheses? Para onde?
Apenas gemidos incontidos se ouviram como resposta. Ele voltou a gritar, no meio de crepitar do fogo:
— Queimem-lhe agora as pernas!
Os gemidos continuaram, como único sinal de vida.
— Vamos! Posso suspender-te o martírio! Qual foi o caminho que eles seguiram? O da Galiza?... O do mar?...
Boca cerrada, num gesto contraído de alucinante dor, a jovem lusitana gemia apenas, por não conseguir um silêncio total. O romano estava louco de cólera ante tamanha resistência.
— Por César, que hás-de falar! Para onde foram eles?
E sem desfitar a jovem à qual as chamas queimavam já o ventre, ele gritou aos soldados, quase numa alucinação:
— Façam subir o fogo! Mais alto! Mais alto!
O fogo crepitou. As chamas subiram. Os gemidos foram mais fortes. Depois enfraqueceram.
— Agora falas, ou morres!
Mas desta vez nem os gemidos soaram. Apenas o crepitar do fogo, música infernal levada pelo vento gritante do monte. O romano voltou a gritar.
— Tirem-na daí! Não quero ver negro um rosto que foi tão belo!
Os homens desataram o corpo inerte de Brunilde. Estava morta. O romano debruçou-se sobre ela, murmurando:
— Teimosa! Preferiste morrer... Que pena!
De súbito os seus olhos descobriram ante a túnica mal queimada um papel fumegante ainda. Com precauções arrancou-lho do corpo. Era o mapa semiqueimado. Ele exclamou:
— Um plano de fuga! Ela trazia um plano! Está muito queimado... No entanto... esperem... Este caminho… leva ao mar!... É isso... Eles seguiram pelo rio até ao mar! Vou informar César. Triunfámos, finalmente! Sabemos o caminho dos fugitivos!
Grandes aclamações se seguiram. No ar, o vento tentava pôr em debandada o cheiro a queimado e o fumo adensado no espaço. Mas o fumo fugia e o vento parecia repetir, num eco, os gemidos dolorosos da jovem lusitana que soubera guardar o seu segredo...
O destacamento enviado por César em perseguição dos montanheses lusitanos seguia rio abaixo. Chegados à foz, souberam que, efectivamente, um grosso de homens havia conseguido umas barcas com as quais se passaram para a ilha. Então, César ordenou que fossem construídas jangadas, nas quais os seus soldados iriam desbaratar os refugiados dos Hermínios. E as jangadas fizeram-se ao mar, levando os soldados de César.
Quando na ilha se soube da proximidade dos romanos, Mário calculou que algo de grave havia acontecido a Brunilde e às suas companheiras. Mas o jovem chefe tinha o seu plano. Mantendo a calma dos companheiros, à maneira de Viriato, deixou que os romanos fossem desembarcando. E foram caindo em cima deles à medida que se fazia o desembarque! A vitória foi total. Todo o destacamento foi morto pelos homens de Mário, à excepção de um deles: o oficial romano que comandava a expedição e dera a morte a Brunilde. Dele, quis Mário ouvir toda a longa história. O romano, na ânsia de manter a vida, fez um relato perfeito de quanto se passara na montanha.
De rosto contraído pela dor, o jovem chefe lusitano escutava o oficial inimigo sem perder uma das suas palavras. E quando ele chegou ao fim, ordenou-lhe:
— Vai-te! Vai para terra!
O romano não encobriu a sua surpresa.
— Dás-me a liberdade… a mim que ordenei a morte da tua noiva?
O jovem lusitano mordeu os lábios, para aguentar a dor moral que o atormentava. E respondeu, seguro:
— Sim, dou-te a liberdade! César precisa de alguém que lhe relate o acontecimento, e ninguém melhor do que tu o poderá fazer. Mas não omitas a César este facto: um povo cujas mulheres preferem morrer a atraiçoar a sua causa, será difícil de vencer!

E conta ainda a lenda que ainda hoje, no monte onde a jovem lusitana morreu queimada, se ouvem de vez em quando, trazidos pelo vento, dolorosos queixumes que o povo atribui a Brunilde, afirmando sentenciosamente:
—No ar geme ela!... No ar geme ela!...

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume II, pp. 35-42
Place of collection
Barco, COVILHÃ, CASTELO BRANCO
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