APL 3029 Lenda da Conversão de Abul

Na freguesia de Barbeita existe um cruzeiro em cuja haste está a imagem do apóstolo Sant’Iago, ligada a uma bonita lenda que ainda hoje ali se conta.
 
Em tempos que já lá vão, vivia em Barbeita um conde muito poderoso que tinha uma irmã formosíssima chamada Margarida. Muitos eram os seus pretendentes. Porém a jovem mantinha-se indiferente a essas paixões e a todos repudiava. Um tanto inquieto, o conde falou-lhe certa vez:
— Margarida! Constou-me que a vossa indiferença se manifesta para encobrir um grande amor. Isso é verdade?
A jovem empalideceu. Parecia atónita.
— Senhor, quem vos segredou tais intrigas?
O conde sorriu.
— Alguém que vela por mim e me quer mais do que vós.
— Referis-vos a D. Aldonça?
— Sim.
— Duvido que ela vos queira tanto quanto julgais, senhor meu irmão!
— Porque dizeis tal?
— Por saber que ela ama outro homem!
— Como o sabeis?
— Adivinhei-o!
O conde não pôde conter o espanto.
— Adivinhastes?... como assim?
— Senhor, se um dia amardes alguém com todas as veras da vossa alma e perto de vós e daquela a quem amais estiver o vosso maior rival, não sereis capaz de o pressentir?
O conde franziu as sobrancelhas.
— Que quereis dizer, Margarida?
— Que D. Aldonça é a minha rival mais directa!
— Calai-vos, minha pobre irmã, que podem ouvir-vos! Que iriam imaginar? D. Aldonça declarou em público a sua afeição por mim. Disse-me claramente diante de alguns dos meus vassalos.
Margarida abanou a cabeça.
— Senhor, não vos deixeis iludir! Tudo foi propositado. É poeira que ela vos lança nos olhos!
O conde mostrou-se agastado:
— Creio que não estais a ser razoável, Margarida. Todavia, algo de concreto me ficou deste nosso encontro. Vós, a mulher mais requestada deste condado, a todos desprezais, não porque o vosso coração seja de gelo mas por amar alguém cujo nome não desejais confessar!
Margarida concordou:
— Na verdade, assim é, senhor meu irmão. Amo alguém que neste momento já está bem perto de nós. Não devo ocultar por mais tempo o meu segredo.
— E quem é esse alguém?
Abul Wali.
O conde deu um salto de indignação.
— Que dizeis? O mouro que o nosso rei vai enviar-me para com ele parlamentar?
— Esse mesmo.
— E como o conhecestes?
— Em Toledo.
— Toledo?
— Sim. Quando estivemos de visita ao alcaide de Toledo para negociar a aliança com ele e com o rei de Leão contra Castela.
— Será possível? Não posso acreditar!
— Sim, meu bom irmão. Há muito que amo Abul e sei que sou correspondida com tanto ou maior entusiasmo!
— Espero que todos ignorem esse amor que vós mesma não vos atrevíeis a confessar.
— D. Aldonça já o descobriu… tal como eu descobri que ela ama Abul, apesar de castelhana e cristã.
— Mas se o mouro não veio ainda aqui...
— D. Aldonça é viúva de um leonês. E esteve connosco em Toledo.
O conde, que até ali se conservara de pé, sentou-se e levou as mãos à cabeça, murmurando:
— Quando será que poderemos ler claro no pensamento das mulheres?...
Margarida sorriu.
— Senhor meu irmão! Apenas o vosso orgulho está destroçado neste momento; por isso vos falo deste modo.
Surpreendido, o conde olhou a irmã.
— Assim pensais? Pois vos juro que amo D. Aldonça e desejo torná-la minha esposa!
Margarida afligiu-se.
— Senhor, tende cuidado! Essa mulher é capaz de tudo! Assim como vos falou de amor em público, falou a Abul... mas sem testemunhas.
— Como o sabeis?
— Eu própria os surpreendi em Toledo. Daí a certeza do que vos contei.
O conde mordeu os lábios. No seu olhar surgiu uma centelha de ódio.
— Se é verdade o que me dizeis, acreditai que o vosso Abul será bem vigiado. E ai dele se cometer qualquer deslize!
Margarida implorou:
— Meu irmão! Se Aldonça vos contar histórias a respeito de Abul, não a acrediteis! Ela deve sabê-lo odiar na mesma medida que o amou. Casando-se convosco, não só perderá Abul como vos influenciará contra mim.
O conde exasperou-se:
— E que quereis, afinal? Casar com um mouro?
— Abul, se eu lhe pedir, far-se-á cristão.
— Será um traidor para os seus!
— Será mais uma alma para Cristo!
— Se abjurar a sua religião, será apenas para vos possuir e convosco partilhar do meu condado.
— Abul jurou-me um amor desinteressado.
— Pois que venha! Eu o saberei vigiar e castigar na devida altura!
E sem mais delongas, o conde saiu do aposento.
Juntando as mãos e elevando os olhos para uma imagem do apóstolo Sant’Iago, Margarida pediu:
— Meu santo pioneiro da Cristandade! Olhai pelo meu amor, para que Abul se converta e possa ser compreendido pelos meus! Livrai-o de todo o mal! Ámen!
 
A chegada de Abul fez sensação. Era um homem muito novo, de tez morena, olhos grandes, negros e de olhar profundo. A sua voz era cadenciada, num tom que agradava a quem o ouvia. Falava o castelhano correctamente. Era inteligente, elegante e montava com admirável garbo.
Quando o conde se inteirou das muitas virtudes que Abul oferecia, sentiu mordê-lo o ciúme. Compreendera que, afinal, era fácil qualquer mulher interessar-se pelo mouro — apesar de mouro. E pensou em Aldonça. Na sua irrequieta e bela Aldonça que o soubera conquistar! Ah, se ela se mostrasse atraída para o jovem mouro, decerto as coisas não iriam correr bem!...
Entretanto, Margarida parecia radiante. Abul não mostrara o menor interesse por qualquer das outras mulheres que se esforçavam por agradar-lhe. Não faltou, pois, à entrevista que a aia de Margarida lhe marcou, nessa noite de fins de Agosto. O luar, um luar de sonho, brilhante como sol prateado, envolvia os campos, as casas, as pessoas. O coração de Margarida batia no peito como asas de pombas ao levantarem voo. A noite estava quente. Ouviam-se cantar os ralos. Junto a um arbusto do parque, a jovem distinguiu o seu bem-amado. Este viu-a também, e apressou-se a vir ao seu encontro. Tomou-lhe uma das mãos e beijou-a com respeito e ternura. Sorria feliz. A sua voz acariciou-a:
— Querida! Julgo sonhar por vezes, quando penso que a ambos nos cobre o mesmo manto prateado do luar… que seguro a vossa mão... que acaricio o vosso rosto... que vos falo e vos digo quanto vos amo!
Enleada, Margarida, julgava-se no Paraíso.
— Abul! Considero-me a mulher mais favorecida da Terra!
— Que fazíeis quando estáveis longe de mim?
— Pensava em vós e no modo de tornar possível o nosso enlace!
— E encontrastes esse modo?
— Cheguei sempre à mesma conclusão.
— E qual, minha bem-amada? 
— Só Deus poderá unir-nos! Deus, o Único, o Pai dos cristãos!
Abul mordeu os lábios antes de falar.
— Senhora! Eu creio em vós, mas aprendi que o Deus verdadeiro é Alá. Como pensar que os meus antepassados erraram?
— E se surgisse uma prova?
— Que prova?
— Um milagre!
— A que chamais milagre?
— A realização rápida e fantástica de um desejo para o qual não conseguimos ver possibilidade de realização.
— Dai-me um exemplo.
— Escutai. Quando vim de Toledo, as saudades que por vós sentia eram tantas que levava horas sem dormir.
Abul apertou com mais força a mão pequenina de Margarida. Ela continuou:
— Meu irmão instava para que me casasse, e os pedidos de casamento sucediam-se. Já se murmurava, pelas recusas que eu não podia evitar. Então, certa tarde, enquanto orava, alguém falou do poder milagroso do apóstolo Sant’Iago. Sem demora pedi-lhe com fervor que vos trouxesse junto de mim, mas em missão de paz, pois jamais conseguirei admitir guerra entre nós.
Abul sorriu e concluiu quase desconfiado:
— Minha querida! Terei de admitir que foi o vosso apóstolo que segredou ao alcaide de Toledo que me enviasse a estas terras?
Margarida exclamou, convicta:
— Estou certa disso!
Abul olhou-a bem nos olhos.
— Ouvi o que vos digo: se um dia assistir a um desses milagres, juro-vos que acreditarei no vosso Deus!
Calaram-se os dois. Era demasiadamente solene o momento para que fosse cortado com palavras. Apenas os seus olhos pronunciavam frases de amor e ternura. Frases que só eles ouviam no eco dos seus corações.

Aquela manhã fora marcada logo ao nascer do Sol. A efervescência de ânimos exaltados fazia um burburinho que intimidava as crianças do lugar. Entre as frases entrecortadas de ódio aparecia várias vezes a palavra «infiel».
Que se passara? Ainda não havia um mês que Abul estava na povoação e fora recebido pelo conde. E já o povo o queria matar. Porquê?
Diz a lenda que Aldonça, louca de ciúmes, pois estava apaixonada pelo mouro que a repudiara, excitara o ódio do conde contra o infiel, fingindo-se ofendida por o deixarem permanecer em terras de gente cristã. Por outro lado, conseguiu convencer o irmão de Margarida de que o mouro a requestara, apesar de se dizer apaixonado pela jovem cristã. Aldonça esbofeteara em público Abul, fingindo que este fora incorrecto. Daí, nascera um ódio implacável do conde para com o mouro. Fora expulso do castelo. Todavia, receando Aldonça que este voltasse para levar consigo Margarida, inventou novas mentiras e alertou o povo contra o jovem mouro, que se viu forçado a fugir. Mas o povo saiu no seu encalço, acossando-o de perto.
Cansado de correr, desarmado e faminto, Abul parou junto de uma fonte. Estava decidido a morrer pela sua bem-amada. Ia voltar. Ouviu, já perto, a assuada do povo. Iam matá-lo. Olhou os seus braços fortes e viu-se impotente para deter uma turba tresloucada. Então, de súbito, lembrou-se do que Margarida lhe havia dito um dia sobre o milagre. Ela falava-lhe muito de Sant’Iago, o Apóstolo. Se fosse verdade — pensou —, se fosse verdade! Olhou o céu azul com o Sol a doirar os campos. Murmurou:
— Sant’Iago me proteja! Se me salvar, eu acreditarei num só Deus e em Cristo, o enviado!
A turba estava já à vista. De súbito, um cavaleiro correu por entre a multidão, fazendo-a abrir alas, assustada. Era o conde. Abul bem o viu. Não lhe restavam dúvidas de que fora ele quem mais instigara o povo contra a sua condição de mouro.
Chegado à frente, o conde deu uma reviravolta ao cavalo e, pondo-se de costas para Abul, ficou de frente para a turba que expandiu a sua ira. Então, o jovem conde falou:
— Escutai-me antes de proceder! Os vossos ânimos estão exaltados porque não queremos mais no nosso território um infiel. No entanto, saberemos nós, acaso, se ele continua a pensar como tal? Acabam de afirmar-me que o enviado de Toledo renegou a sua fé para aceitar a nossa. Deixai que o conduza de novo ao meu palácio para que ele se possa justificar!
Abul ouviu, suspenso, a comunicação do irmão de Margarida. Como por encanto, a turba mudou o seu entusiasmo agressivo para uma alegria ruidosa. Atiravam com os paus ao ar e gritavam:
— Baptizai-o! Baptizai-o!
Perplexo, Abul nem sabia que pensar. Acabara de assistir e de participar num autêntico milagre. Elevou os olhos ao Céu e declarou:
— Sant’Iago! Hei-de continuar a servir-vos!
Já o conde o olhava frente a frente, perguntando-lhe:
— É verdade o que me mandastes dizer por aquele cavaleiro velho?
Abul mostrou-se surpreendido:
— Cavaleiro? Que cavaleiro?
Alarmou-se o conde:
— Então... não pedistes a um cavaleiro cristão que me dissesse que vos queríeis baptizar?
— Eu?
— É então falsa a comunicação?
Abul levou as mãos aos olhos julgando sonhar. Depois declarou:
— Senhor! Eu prometi a Sant’Iago seguir a vossa fé. Apenas isso!
O conde ficou pálido. Depois exclamou:
— Pois bem! Sant’Iago compreendeu que era necessário agir antes que vos matassem e foi ele próprio falar comigo, recomendando-me que agisse depressa.
Abul abriu os olhos num espanto:
— Sant’Iago fez-me esse milagre?...
— Sim! E para que fôsseis dos nossos! Vinde, irmão! Margarida desfaz-se em lágrimas na capela. Decerto foi ela quem amoleceu o vosso coração e pediu a Sant’Iago que vos iluminasse. Vinde! Vai haver festa neste lugar!
Abul sorriu. E declarou:
— Feliz me sinto pelo que aconteceu. E se me permitis, neste lugar erguer-se-á um padrão que perpetue este milagre de Sant’Iago, que se realizou em mim!
O conde abraçou Abul. A multidão dava berros de alegria, como criança inconsciente. No firmamento azul, o sol brilhava forte, dando mais calor a essa metade do mundo!

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume V, pp. 237-242
Place of collection
Barbeita, MONÇÃO, VIANA DO CASTELO
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