APL 2858 Lenda de S. João e do Longuinhos

Pois conta a lenda que, há muito tempo já, vivia nos arredores de Braga, perto do Bom Jesus do Monte, o famoso Longuinhos, senhor abastado e poderoso que mandava em toda a região. Quando Longuinhos passava, cavalgando o seu garboso ginete, os homens intimidavam-se um pouco, e as mulheres — principalmente as raparigas — ficavam a olhá-lo, como que em adoração! E Longuinhos, consciente do seu poder e da sua força, não deixava os créditos por mãos alheias. Como nenhum outro, ele sabia atrair as raparigas. E levava sempre consigo um bando enorme de sorrisos e de esperanças que bastavam para animar qualquer romaria da terra.
Mas — caso singular — embora rodeado e seguido pelas mais lindas raparigas da região, nunca pelo cérebro de Longuinhos passou qualquer pensamento pecaminoso a respeito delas. Por isso era temido e respeitado. E o seu nome evocava apenas confiança, alegria, bailaricos e descantes.
Porém, certo dia, Longuinhos sentiu que o seu coração se alvoraçava. Foi quando conheceu uma jovem camponesa, tão bela, tão fresca que dir-se-ia uma flor campestre beijada pelo Sol. Chamava-se Rosinha, e nunca nome algum fora tão bem posto a alguém. Longuinhos sentia que o seu pensamento estava irremediavelmente preso à encantadora imagem que o seu coração guardava como precioso tesouro.
Depois de hesitar algum tempo, tratou de saber quem era o pai de Rosinha. Fácil lhe foi descobri-lo. Era Pedro, um velho lavrador de modos rudes, quase boçais. Longuinhos procurou-o certa manhã. O primeiro contacto tornou-se um tanto difícil; mas depois, posto ao corrente das intenções de Longuinhos, foi com verdadeiro júbilo que o velho Pedro ouviu da boca de homem tão poderoso uma frase que testemunhava o mais vivo interesse pela filha dum pobre lavrador:
— Pois, senhor Pedro, fique sabendo que eu gosto muito de sua filha!
Todavia, rude e matreiro, o velho resolveu esconder a alegria que o tomava de assalto, para tentar um pequeno golpe.
Franziu as sobrancelhas dum modo quase teatral, e respondeu secamente depois de alguns segundos de silêncio:
— Quem manda na minha filha sou eu! Ela casará com quem eu quiser! Que me importa que goste dela? Ela é minha filha!
Um tanto desnorteado, Longuinhos atacou de novo:
— Senhor Pedro... Eu bem sei que o senhor é quem manda na Rosinha... Por isso mesmo vim falar consigo. Já me conhece com certeza... Sabe como eu sou rico... Posso fazê-la muito feliz!
Um esgar de desdém foi a reacção do velho. Depois, numa voz onde traía um pouco da sua inquietude, o velho tornou:
— Quer levá-la, não é? E eu? Fico para aqui abandonado como um traste velho, não?...
Longuinhos apressou-se a dizer:
— Que ideia! Dar-lhe-ei também, a si, o dinheiro suficiente para viver sem privações.
O velho não disse palavra, mas um clarão de alegria iluminou-lhe o rosto. Sentindo que o velho Pedro estava de antemão conquistado, Longuinhos pediu-lhe com veemência:
— Faça quanto puder para a convencer! Acredite que nunca mulher alguma me interessou até hoje para minha esposa... Só ela!
Então, o velho colocou a mão no braço de Longuinhos e declarou:
— Esteja descansado! A Rosinha só fará o que eu lhe mandar. E quanto a nós... enfim, creio que nos entenderemos...
Um sorriso largo selou esse pacto de aliança. Contudo, quando uma hora mais tarde o velho Pedro chamou a filha e a pôs ao corrente da situação, esta olhou-o alarmada.
— Mas isso não pode ser, meu pai! Bem sabe que não pode ser!
Ele gritou-lhe:
— Cala-te! É preciso que não voltes as costas à fortuna!
Ela torceu as mãos no avental.
— Mas bem sabe que eu...
O pai interrompeu-a furioso:
— Então não compreendes, filha, que me estás a arruinar com a tua recusa?
As lágrimas subiram aos olhos de Rosinha, enquanto um queixume lhe subia aos lábios.
— Oh, meu pai! Eu quero que me desculpe, mas não posso... Não devo aceitar a proposta do senhor Longuinhos... O meu coração já o dei...
O velho Pedro desfechou um murro na tosca mesa de jantar.
— Cala-te! Não quero ouvir as tuas lamentações! Que me interessa o teu coração?... Prometi ao senhor Longuinhos que havias de ser sua mulher, e hás-de sê-lo!...  
A resposta de Rosinha chegou tímida, mas pronta:
— Só depois de morta, meu pai!
O velho olhou a filha de frente. Uma crispação estranha mudava-lhe as feições e punha na sua voz o tom desesperado da cólera mal contida.
— Filha ingrata! Eu que te tratei com tanto amor, tanto carinho! Pensei que serias sempre a minha protecção, a minha ajuda! E agora que podias salvar o teu pai da miséria… agora que me poderias auxiliar pela primeira vez… queres voltar-me as costas, abandonar-me... só por causa duma jura que fizeste?!
As lágrimas, que teimosamente assomavam aos olhos de Rosinha, desfilaram silenciosamente pelo seu rosto aveludado. Mas o velho Pedro, que detestava silêncios e lágrimas, repetia furioso:
— Achas bem, não é assim?... Valho menos que uma jura?...
Então Rosinha compreendeu que era necessário falar, tentar qualquer coisa pelo seu amor, e declarou submissa:
— O pai bem sabe que foi com o seu consentimento que jurei no Bom Jesus que casaria com o Artur!
Um berro fez estremecer a rapariga:
— Pois quebra a jura, já te disse! Sou eu que mando! És minha filha e tens de obedecer-me! Nem que tenha de levar-te de rastos, terás de acompanhar o senhor Longuinhos ao altar...
Ela tentou um derradeiro apelo:
— Meu pai... eu gosto do Artur...
— Cala-te! Se não queres ser responsável pela minha miséria... obedece-me!
Rosinha baixou a cabeça. Um desespero enorme abafou-lhe a garganta. Sentiu-se de súbito como que perdida e supreendeu-se a murmurar:
— Faça-se a sua vontade, meu pai.

Durante noites e dias, Rosinha chorou perdidamente. Artur andava longe, não sabia o que estava acontecendo. E ela sentia-se à beira do abismo. Como fugir à vontade implacável de seu pai? Devia-lhe obediência. Portanto, se ele a obrigasse, não teria outro remédio senão casar com um homem a quem não amava!
Nesse mesmo instante, os seus olhos chorosos apegaram-se a uma velha imagem de S. João. O seu coração bateu mais apressado. Oh! Se ele quisesse!... Um raio de esperança iluminou-lhe o rosto. Caiu de joelhos frente à imagem e implorou:
— Oh meu bom, meu querido S. João, salva-me, por favor! Faz um dos teus milagres, S. João! Ficar-te-ei eternamente grata! Eu já não tenho forças para lutar!... E como posso eu opor-me aos desejos daquele que é meu pai?... S. João, se eu tiver de casar com outro que não seja o Artur, perdoa-me, meu Santinho que falte ao juramento que fiz! Bem sabes que não tenho culpa! Mas se tu quiseres... certamente poderás resolver tudo, meu S. João...
Rosinha calou-se. Os soluços não a deixaram continuar a prece. E teve a sensação de que escutava uma voz distante, vaga mas muito terna, que lhe dizia:
— Descansa, minha filha... Eu velarei por ti! Eu conseguirei que não faltes ao juramento que fizeste.
Surpreendida, Rosinha ergueu a cabeça. Seria possível tamanho milagre?... Não seria antes uma alucinação dos seus sentidos?...

Entretanto, segundo conta a lenda, o senhor Longuinhos, num dos momentos de meditação a que se entregava frequentemente no intervalo dos folguedos, teve também uma curiosa e estranha visão: um vulto vinha ao seu encontro e falava-lhe numa voz que não parecia deste mundo:
— Longuinhos! Já não estou satisfeito contigo! Tu que eras bom, que eras justo, queres agora estragar a felicidade dos outros?...
Atarantado, Longuinhos perguntou:
— Mas quem me fala?... De quem é esta voz?...
Serenamente a voz tornou:
— Pois não me conheces? Sou S. João, Longuinhos... O teu santo predilecto, como tu costumas dizer!
Longuinhos caiu de joelhos, tartamudeando:
— Pois será possível?... Oh, meu S. João! Meu S. João!... Será possível?
— Sim, é possível. E estou aqui para te dizer que não acho bem que procedas como ultimamente. A Rosinha gosta do Artur, pode e deve ser feliz com ele... Para que a queres tu desgraçar?
Cada vez mais embaraçado, Longuinhos levou as mãos ao rosto. As palavras do santo continuavam a ressoar-lhe aos ouvidos, numa recriminação que o atormentava. A situação apareceu-lhe clara e ele acabou por compreendê-la. E, num assomo de remorso, murmurou:
— Perdoa, meu S. João! Tenho sido um louco! Eu próprio hei-de ser o padrinho do casamento deles!  
Então a voz do santo tornou, serena e amiga:
— Ora aí está uma boa acção que eu louvo e agradeço!...
Longuinhos sorriu. Sorriu contente consigo mesmo. S. João, o seu santo predilecto, continuaria a ser seu amigo! Já seria um bem demasiadamente grande. Quanto ao resto... faria por esquecer!
E, assim, conta ainda a lenda que Longuinhos não mais descansou enquanto Rosinha e Artur não casaram, apesar da contrariedade do senhor Pedro. E diz-se também que, ainda hoje, em certas aldeias do Norte, na procissão de S. João, há um par de noivos simbolizando a Rosinha e o Artur.

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume IV, pp. 27-30
Place of collection
BRAGA, BRAGA
Narrative
When
20 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography