APL 2829 Lenda da Conversão dos Mouros de Trancoso

Há lendas tão ligadas à nossa História, que dificilmente conseguimos saber onde acaba essa mesma História e começa a Lenda. É o caso, por exemplo, da lenda da conversão dos mouros de Trancoso. Para a relatarmos teremos de confundir acontecimentos do reinado de D. Afonso Henriques com as histórias que o povo, na sua efervescente imaginação, vai tecendo de pais para filhos.
 
Quando Omar, com as tropas do Garbe, atravessou inesperadamente a fronteira portuguesa, dirigiu-se a Leiria e aí vingou o sangue dos seus irmãos, no sangue dos nossos guerreiros. De Leiria passou a Trancoso, e o castelo que fora deles mas estava então em poder dos cristãos sofreu verdadeiro desbarato. Do facto foi avisado D. Afonso Henriques, e então o primeiro rei de Portugal fez marcha forçadas para chegar a tempo de reconquistar o que havia perdido. É precisamente neste momento que a nossa lenda começa...

Corriam as mulheres espavoridas, tentando fugir à fúria dos sarracenos. Nem os velhos, nem as crianças escapavam. Numa sede de vingança, os homens de Omar tinham ordem de destruir tudo à sua passagem, de dar a morte a tudo quanto vida tivesse!
Fugindo como as outras, Iberusa Leoa conseguiu arrastar-se até às muralhas e sair por uma brecha. Já não era criança, mas os traços da juventude adornavam-lhe ainda as bonitas feições. Só, no campo, procurou uma gruta. Vira morrer o pai e o irmão sob os golpes dos alfanges sarracenos. Vira fugir a mãe no turbilhão das mulheres que tentavam escapar ao morticínio. E sabia também que dessas mulheres haviam ficado apenas as mais jovens e formosas — para o prazer dos guerreiros mouros — tendo sido mortas as consideradas inúteis...
Elevando os olhos ao céu, Iberusa pediu a Deus, numa prece sentida:
— Senhor! Não permitais que o meu corpo nem o meu espírito fiquem pertença dos infiéis! A Vós me consagro, Senhor, e dai-me a vida ou a morte, segundo a Vossa vontade, mas liberta da profanação sarracena!
Deus pareceu ter escutado Iberusa. Os sarracenos não a encontraram; e vivendo numa gruta, como ermitoa, a jovem parecia ter reencontrado a felicidade. Um dia, porém, ela ouviu certa algazarra desusada naquelas paragens, onde só os passarinhos, chilreando, cortavam o silêncio. Persignou-se. Esperou. À entrada da gruta surgiram dois homens. Outros os seguiram. Eram guerreiros mouros. Iberusa empalideceu. Os mouros entraram na gruta. Agarraram na mulher cristã e levaram-na para o castelo.
 
Na luz fraca que iluminava o recinto frio e húmido, Iberusa distinguiu a silhueta dos seus guardadores. Havia dois dias que ali a conservavam, tendo por cama uma enxerga e por alimento um bocado de broa e uma infusa com água. Mas para Iberusa, que se habituara já à maneira simples de viver dos eremitas, o que lhe ofereciam era sobejamente bom. Não lhe haviam tocado nem nas pontas dos cabelos. Disso dava graças aos Céus. Mas o seu cativeiro, guardada à vista, não lhe dizia nada de bom. Daí a sua inquietação, embora se insurgisse consigo própria por não saber entregar-se confiadamente nas mãos de Deus e deixar que o Seu desígnio nela se cumprisse.
Os mouros que a guardavam eram quatro, revezando-se dois a dois. Às vezes, um deles parava no seu passeio de cá para lá e de lá para cá e ficava a observá-la. Foi numa dessas paragens que Iberusa resolveu interrogar o mouro. Aparentando uma calma que não possuía, perguntou:
— Como te chamas?
O mouro olhou-a surpreendido. Era a primeira vez que ouvia a voz da mulher que guardava.
— Para que o queres saber?
— Para conversar melhor. É triste nem sequer saber o nome de quem nos guarda.
— Chamo-me Aby-Hassan.
— E o teu companheiro?
— Ben-Azir.
— Já conheces, decerto, o meu nome...
— Ouvi-o ontem. É nome cristão?
— Não é dos mais vulgares. Mas sou cristã e gosto dos Portugueses.
— Veremos se o teu rei também gosta de ti.
— Porquê?
— Porque pensa o nosso chefe trocar-te por um guerreiro nosso, sobrinho do alcaide deste castelo.
Iberusa compreendeu então por que a retinham. Perguntou:
— Pensas que o rei Afonso irá trocar-me por um guerreiro que vos faz falta?
— Talvez. És cristã...
— Mas não devo valer tanto para o meu rei como o seu prisioneiro. Se ele recusar... que acontece?
— Serás morta.
— Que se cumpra a Vontade de Deus!
— Não tens medo?
— Quem traz Deus no coração nunca tem medo!
— Mesmo diante da morte?
— Mesmo diante da morte!
O mouro abanou a cabeça. Aquela estranha mulher produzia-lhe certa inquietude que não sabia definir.
— Ouve: porque te isolaste no monte?
— Para estar longe dos homens e perto de Deus.
— E para que quiseste isolar-te dos homens?
— Porque eles só pensam em lutas, em vinganças, em mortes!
— E Deus, não dá também a morte?
— O que julgas ser morte — é vida!
— Como assim?
— Porque depois desta passagem sobre a Terra é que a verdadeira vida começa.
— Então, para que lutamos nós?
— Para fazerem da Terra o seu Céu. E isso é que está errado. Por isso só encontram o Inferno!
A conversa foi subitamente interrompida. Um outro mouro chegou. Vinha apressado. Deu uma ordem que Iberusa não compreendeu. O outro perguntou:
— Já?
— Não, daqui por algum tempo. Volto a avisar.
E saiu. Os dois mouros que ficaram entreolharam-se. Depois sorriram a Iberusa. Ela sorriu-lhes também e perguntou:
— Trata-se de mim?
— Sim. O teu rei não respondeu. Mas soubemos que se dirige para aqui com novo exército.
— Isso significa que vou morrer?
— Esta noite, ao que parece.
— Como?
— Ainda não sabemos. Hão-de querer apresentar ao teu rei a tua cabeça, logo que ele chegue.
— Que se faça em mim a Vontade do meu Senhor!
— Quem é o teu Senhor?
— O meu Deus!
— Julgava que era o teu rei.
— O meu rei ajoelha diante do meu Deus, que é o dele e de todos os que n’Ele acreditam.
— Eu tenho Alá!
— Não te censuro. Mas só o meu Deus é verdadeiro! O único! O inigualável!
O mouro silenciou. O companheiro, que até aí escutara tudo sem intervir, arriscou então:
— Gostarias de voltar para a tua gruta?
— Se Deus aprovar a minha fuga, Ele me ajudará!
— Sozinha não poderás sair daqui.
— Irei contigo e com o teu companheiro!
— E se encontramos as tropas do teu rei?
— Ele vos perdoará!
Voltaram os mouros a silenciar. Depois, afastaram-se um pouco e conversaram em voz baixa. Quando já parecia estarem de acordo, o que havia falado primeiro voltou-se para a sua prisioneira.
— Iberusa, resolvemos seguir-te.
A alegria transformou as feições da mulher. Exclamou:
— Louvado seja Deus!
O mouro sorriu.
— Estás muito contente. Afinal sempre querias viver…
— Estou contente por mim, mas muito mais pela Graça que vão receber. Como pensam que poderemos sair daqui?
O mouro sorriu. E disse:
— O teu Deus nos ajudará!
 
E conta a velha lenda que no dia segumte, quando as tropas de D. Afonso Henriques se preparavam para tomar de assalto o castelo, encontraram no monte, próximo de Trancoso, Iberusa Leoa e quatro mouros que os esperavam para lhes entregarem a ermitoa e pedirem que os baptizassem. Tal conversão — a dos guardas de Iberusa — fez efervescência entre os mouros de Trancoso. O castelo foi tomado pelos Portugueses e mortos ou aprisionados os seus habitantes. Todavia, ali, no monte próximo, ficaram mais quatro cristãos vivendo a vida solitária e mística dos contemplativos. Vendo-os, nos dias de romaria, o povo apontava-os, dizendo em ar de segredo — que toda a gente sabia:
— Lá vão os mouros convertidos de Trancoso!



Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume III, pp. 161-164
Place of collection
TRANCOSO, GUARDA
Narrative
When
12 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography