APL 645 Santo António e o Lobo Branco

A ânsia de maiores rendimentos e a necessidade de melhor aproveitamento dos extensos incultos de entre Zebreira e Alcafozes, levaram alguns moradores desta última povoação — a que se juntaram outros de Monsanto e de Idanha-a-Velha — a fixar-se, no começo do século XIX, a sudoeste da serra da Monrracha, junto da ribeira da Toula.
 Surgiram as primeiras cabanas de colmo, constituiu-se o primeiro núcleo de povoadores a que vieram associar-se outros de Idanha-a-Nova, Salvaterra do Extremo e Zebreira, por forma que Toulões tinha já em 1840 mais de quarenta fogos.
 Apascentando os seus rebanhos, cultivando as terras de Malhadiz foreiras do município de Monsanto, a vida, embora dura, corria-lhes em boa paz.
 Em presença de extensos matagais que o duro trabalho de cada dia não chegava para desbravar, todos, homens e mulheres, velhos e crianças tinham o seu mester.
 Enquanto os homens acompanhavam, rego a rego, as juntas de bois no revoltear do terreno, ou levantavam, de sol a sol, o pesado enchadão, às mulheres entregavam-se aos serviços domésticos, à sacha e à monda nos campos, e as crianças à guarda dos rebanhos.
 E, mal o sol despontava, lá iam todos, diariamente, campo em fora, cada qual à sua ocupação.
 No lar de uma das pobres choupanas, preparada para a ceia e reunidos os familiares, faltou certo dia o mais tenro dos pequeninos.
 Debalde esperaram os seus, por largos minutos, o regresso.
 Divulgada a noticia pela povoação, todos os moradores, núcleo de bons vizinhos, onde os desgostos como a alegria de um são desgostos ou alegria de todos, pressentindo desgraça, correram à porfia, montes e vales, a gritar e a clamar inutilmente pelo infeliz desaparecido.
 Passaram dias, correram meses, e novas crianças faltaram.
 Inutilmente procuravam aquelas almas aflitas, na simplicidade dos seus conceitos, razão justificativa de tão grande desgraça!
 Os mais velhos, baseados na velha crença de que lobo que se alimente de carne humana passa a atacar e a procurar o homem, atribuíam àquelas feras a sua dor,
o seu luto.
 Toulões passava dias aflitivos.
 Um grupo de homens bons, seguros na sua fé, resolveu tomar a iniciativa duma festa a Santo António, advogado das coisas perdidas e patrono dos vivos, para que os livrasse de tão grande dano.
 A festa realizou-se, efectivamente com o maior luzimento, e desde então, aquele pequenino povo, escudado na sua devoção pelo santo, passou a viver confiante, sem maiores receios. Desaparecera a origem dos seus sobressaltos e da sua dor.
 Dificuldades monetárias que surgiram, ou desleixo que nosso povo costuma bem traduzir nas palavras «só lembra Santa Bárbara quando faz trovões», deixaram que a festa caísse em desuso.
 Passaram dias, anos, e quando todos se julgavam em boas paz e segurança, Jerónimo Manso, de poucos anos de idade, que apascentava o gado de seus pais, foi súbita e inesperadamente atacado por um lobo de cor pardacenta com uma malha branca no abdómen. As garras da fera havia perecido se lavradores que próximo andavam não tivessem acudido com rapidez aos gritos aflitivos do pequeno.
 Ao pobrezinho pôde ainda a fera roubar um pedaço de couro cabeludo, pelo que teve de usar, durante toda a sua vida, que foi comprida, um pedaço de cabaça das de trepar, para proteger a parte desnudada.
 Estava o povo de Toulões reentrado em amargurados dias de desassossego e intranquilidade!
 Era preciso dar caça à fera, empregar os últimos esforços para que, de uma vez, se limpasse o lugar daquela peste.
 Exímios caçadores percorreram as redondezas.
 Viram o lobo, chegaram mesmo a atirar-lhe.
 Voltar a cumprir a promessa a Santo António era dever de boa gratidão, remédio certo, na crença e fé de Toulões.
 E a festa, embora á custa de sacrifícios, ressuscitou.
 Veio a música, e à missa, que foi a grande instrumental e com toda a pompa, acorreu todo o povo debaixo da mais funda impressão. E quando todos se preparavam para fazer sair a procissão: pendões já no ar, insígnias multicolores de confrarias a dar nota garrida, alguém veio dizer que o lobo fora encontrado morto no campo.
 Muitos correram a certificar-se da veracidade da boa nova. Hossanas a Santo António! A fera estava efectivamente morta! Lágrimas de dor, mas lágrimas de alegria! Santo António, que era já Santo, passava a ser, mais do que nunca, protector de Toulões e advogado das coisas perdidas!
 E a fé que revolve montanhas, a fé santa e pura que salva e redime, passou a ser mais sólida e mais vigorosa do que nunca entre os incansáveis e bons vizinhos de Toula: os Toulões.
 

Source
DIAS, Jaime Lopes Contos e Lendas da Beira Coimbra, Alma Azul, 2002 , p.26-29
Place of collection
Toulões, IDANHA-A-NOVA, CASTELO BRANCO
Narrative
When
20 Century, 50s
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography