APL 2737 Lenda da Aldeia Nova

O frio daquele último dia de Novembro fustigava a campina alentejana, tão massacrada já pelos rigores de um sol quente de Verão. Ali tudo era em extremo. Calor ou frio. Sol ou chuva. Ar que parecia estagnado ou vento furioso levantando os grãos da terra que dá o pão de cada dia, pelo menos a metade de Portugal.
Talvez pela condição do clima, o seu povo assemelha-se a ele. Também é de extremos. Chora e ri. Abraça e mata. Canta e pragueja. Mas é bom. E franco. E valente. Não por exibicionismo, porque é simples. Mas por garra! Jamais alguém tente pôr um pé no pescoço de um alentejano. A resposta será violenta... Todavia, no seu cantar dolente, onde vive muito da melodia nostálgica do Norte de África, existe uma alma aberta a grandes generosidades!
Assim foi, assim é, e assim continuará a ser o Alentejano!
 
Tia Cândida, a senhora mais esmoler da aldeia de Cabeço dos Vaqueiros, na parte baixa do Alentejo, abre mansamente a porta do quarto de sua sobrinha e afilhada — a jovem e bela Cristinita. Com tanto cuidado o faz, que a rapariga nem dá pela sua presença. Com os olhos fitos na imagem de S. Bento, ela ora com a maior devoção. Os seus lábios mal se agitam, tão íntima é a sua prece. Dos olhos de um verde esmeralda caem-lhe lágrimas cristalinas sobre o seu rosto moreno.
Tia Cândida olha-a estupefacta. E como não é mulher para coisas dúbias nem perdas de tempo, resolve interrogar a sobrinha.
— Cristina! Porque choras e rezas com tanto fervor a S. Bento?
Apanhada de surpresa, Cristinita estremece. O seu olhar desvia-se da imagem do santo. Olha a tia e baixa as pálpebras, sem forças para uma completa confissão. Diz apenas:
— Sinto-me tão infeliz!
A tia abana a cabeça de cabelos grisalhos.
— Sei porque sofres! Já o tinha descoberto. Mas recebi agora a confirmação. Tu não gostas do Gonzalez!
Cristina levanta-se lentamente. Seus lábios tremem-lhe, num desejo de dar largas ao choro que lhe oprime o peito. A tia continua:
— Mas então... porque consentiste em ficar noiva dele? Ninguém te obrigou a esse casamento! Respondeste livremente!
Cristina morde os lábios. A sua voz soa comprometida:
— Tia Cândida! Quando afirmei a Gonzalez que casaria com ele... julgava que o Manuel... não gostava de mim...
Tia Cândida abre os olhos num espanto sincero.
— O Manuel? O Manuel, da Aldeia da Fonte do Canto?
— Sim... esse!
— Mas… tu gostas dele?
Cristina sorri entre lágrimas.
— Sim, minha tia. Desde pequenina que gosto dele! Adorava ouvi-lo cantar... ouvi-lo falar... vê-lo olhar para mim...
— Compreendo agora as tuas constantes visitas à aldeia vizinha! Não eram as tuas primas que ias ver… era o Manuel!
Cristina pega nas mãos engelhadas da senhora. Mãos que nunca se furtaram ao trabalho, por mais rude que fosse.
— É verdade, tia. Eu precisava ver e ouvir o Manuel! Sei que este procedimento é vergonhoso mas não consegui fugir-lhe!
Tia Cândida mostra-se preocupada.
— E agora?
Cristina olha pela janela a campina alentejana. O dia está chuvoso. As nuvens correm baixas. Mas ela sorri.
— Ontem... tudo mudou! Encontrei o Manuel na estrada. Ele parou o cavalo e conversámos. As primas bem ouviram o que dissemos.
— E que disseram?
— Ele zangou-se comigo. Disse que era uma vergonha estar eu noiva de um espanhol... e principalmente do Gonzalez.
— E isso bastou para imaginares que és correspondida no teu amor pelo Manuel? Bem sabes o que vai aí de revolta...
— Eu sei. Mas o Manuel também gosta de mim! Disse-mo ontem, tia Cândida! Disse-mo e elas bem ouviram!
— Nunca devias, então, ter aceite o Gonzalez!
— Foi para espicaçar o Manuel... E deu resultado, como vê!
Tia Cândida abana a cabeça:
— Como são tontas as raparigas de hoje!... E que vais fazer agora?
— Peço a S. Bento que me ilumine!
Foi a vez da tia Cândida sorrir com brandura.
— Julgas que S. Bento não tem outra tarefa do que cuidar dos teus amores?
— S. Bento já me tem acudido várias vezes. Ele me ajudará agora, também!
— Pois bem lhe podes orar! Precisamos muito das suas mercês. Os ânimos andam exaltadíssimos e em Lisboa parece que o caso ainda está pior. Mas eu falarei a Gonzalez. Ele compreenderá a tua renúncia.
— E se não compreender?
— Será mais um inimigo!
E tia Cândida saiu do quarto, fechando mansamente a porta atrás de si.
Só, Cristina caiu de joelhos:
— Senhor S. Bento! Valei-me!

O vento corre furioso, fustigando os rostos e atirando a chuva...
Dezembro de 1640 chegara com ventania, uivando, e encontrara as almas dos habitantes pacatos da campina alentejana numa constante efervescência. A decisão da tia Cândida pusera Gonzalez tão furioso como o vento. Desejoso de uma desforra, logo informou os seus superiores de uma rebelião em curso, e esse facto originou a vinda de mais soldados espanhóis, os quais traziam ordem de aprisionar Manuel e quatro dos seus mais dilectos companheiros. Porém, Manuel fugira a tempo. Entretanto rebentara em Lisboa a revolução que libertara Portugal do jugo castelhano. E logo Manuel, reunindo os seus poucos homens, se colocou à frente deles para uma luta tremenda. E a batalha deu-se!...
 
Na casinha de lagedo encarnado, Manuel aperta entre as suas as mãos de Cristina. Está mais magro, mais pálido, e fundas olheiras circundam os seus olhos de inteligente expressão. Tenta sorrir.
— O Gonzalez está furioso! Duas vezes banido é muito para um orgulhoso como ele. Foi expulso da tua vida e do nosso Portugal!
Cristina suspira com angústia:
— Tem cuidado, Manuel! A batalha ainda não está completamente ganha. Ele reuniu um verdadeiro exército e tu tens tão poucos homens...
Manuel deixa apagar-se o seu triste sorriso.
— Eu bem sei, Cristinita. Mas agora é impossível recuar. Ou morreremos todos... ou libertaremos estas aldeias que nos viram nascer!
— Quem chefiará os homens daqui?
— Por ordem superior, estas duas aldeias reunir-se-ão numa só, para melhor defesa, e serei eu a comandar este punhado de homens tão pouco habituados à guerra!
— As duas aldeias vão reunir-se numa só? Nascerá, então, uma aldeia nova?...
— Sim... uma aldeia nova, grande e liberta! Assim Deus nos ajude! Adeus, Cristinita! Suceda o que suceder, acredita que muito te amo!
Cristina olha o seu amado por entre a névoa das lágrimas impossíveis de conter.
— Manuel! Só a ti amei e amo. Suceda o que suceder, não pertencerei a mais homem algum! Vai! E que o Senhor S. Bento te proteja!
E a tarde pardacenta não quis ouvir mais juras de amor e foi-se com certa pressa, a caminho da linha do horizonte onde a noite a esperava para viver o seu dia...

A luta surgiu, feroz, desigual. Luta sem tréguas. Luta de vida ou de morte. Mas, por estranho milagre, esse punhado de homens que se julgava condenado ao fracasso viu com grande júbilo os espanhóis a debandarem, impressionados com a bravura dos seus antagonistas.
A nova correu célere. Quando tia Cândida abriu a porta do quarto da sobrinha, desta vez com menos cuidado do que pusera numa certa tarde de Novembro, de novo encontrou Cristina de joelhos, orando à imagem de S. Bento. Com as mãos trementes de emoção agarrou-lhe a cabeça, exclamando:
— Cristina! Os espanhóis retiram! A nossa aldeia ficará liberta!
A jovem nem teve coragem para se levantar. Curvando ainda mais a cabeça e chorando convulsivamente, só conseguiu fazer uma pergunta:
— E o Manuel?
— Ligeiramente ferido. Foi um herói! Quando em Lisboa se souber o que ele fez, decerto será elogiado e recompensado. Que belo moço!
Sempre soluçando, embora um pouco mais calma, Cristina murmurou:
— Deus seja louvado!
Depois, levantou-se de súbito, impulsionada por um forte pensamento.
— Venha comigo, tia! Quero ir ver o Manuel.
— Iremos. Mas agasalha-te. O frio continua, embora as nossas almas estejam aquecidas. As mulheres têm ordem de não sair de casa. Tentaremos, porém, chegar junto do Manuel!
Cristina deixou de chorar. Parecia agora mais alta. Agarrou os ombros frágeis da tia Cândida.
— Vamos! Vamos depressa!
E a chuva, que caíra toda essa manhã, pareceu ouvi-la e retirou-se para a deixar passar...
 
Numa barraca de campanha improvisada, braço ao peito, lama até aos joelhos, rosto tisnado, olhos fundos em ardências de febre, mas sempre, sempre dando ordens, numa azáfama constante, Manuel sentia-se feliz.
De súbito ouviu vozes no exterior e julgou sonhar. Correu a certificar-se e um grito de alegria saiu dos seus lábios ressequidos:
— Cristina! Como te atreveste?
Arfando de cansaço e de emoção, a jovem respondeu:
— Entreguei-me a S. Bento!
O braço livre do jovem alentejano puxou a si a rapariga. A sua voz soou vibrante.
— Vencemos, Cristinita! Vencemos!
Quase num sopro, tal a sua felicidade, ela acrescentou:
— Acredita, Manuel... foi um milagre de S. Bento!
Talvez para impor a sua presença que parecia esquecida, tia Cândida perguntou, num misto de curiosidade e receio:
— E se eles voltarem?
Manuel afrouxou o abraço em que envolvera a sua bem-amada. Olhou de frente a tia de Cristina — a qual lhe servira também de mãe — e respondeu-lhe com firmeza:
— Agora, já não voltam! Juntei todos os homens válidos e organizei uma defesa permanente. Já o senhor D. João IV foi aclamado rei! Estamos livres!
Com um sorriso quase infantil, tia Cândida murmurou:
— Nem ele ficará sabendo como os nossos homens lutaram aqui!
Manuel abriu a expressão num sorriso franco.
— Não pense mal do nosso rei! Pelo contrário! Mandou já emissários às terreolas mais distantes onde houve luta. E um desses emissários saiu há pouco daqui levando notícias para Lisboa. Estou certo de que el-rei D. João IV irá olhar com carinho para a nossa Aldeia Nova!
Cristina agarrou o braço são de Manuel.
— E porque não lhe chamaremos antes Aldeia Nova de S. Bento? A ele devemos tão grande milagre!
Manuel acariciou-lhe o rosto.
— Aceito com agrado a sugestão. Vou já oficiar para Lisboa. A Aldeia Nova de S. Bento será a aldeia que nascerá da junção de duas aldeias… e de duas almas enamoradas!
Cristina e Manuel olharam-se com carinho. Tia Cândida voltou a impor a sua presença.
— Quase todas as casas estão destruídas...
Senhor de si, Manuel respondeu:
— Nós as reconstruiremos!
Ponderada, tia Cândida voltou a sorrir.
— Com que dinheiro, filhos? Com que dinheiro?! A revolução levou-nos tudo!
Foi ainda Manuel quem respondeu prontamente:
— Com o dinheiro do nosso rei! Já disse e repito... Ele saberá olhar com carinho especial para a nossa Aldeia Nova de S. Bento!
 
Rodopiando, contente, o vento bailou à volta do par enamorado, brincando com os cabelos da jovem Cristina. A campina larga era uma promessa. E no céu cor de chumbo abriu-se uma nesga, como se fosse janela movida por mão cuidadosa. E um raio de sol beijou o par enamorado e tornou mais cândido o sorriso da tia Cândida!...

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume I, pp. 413-418
Place of collection
Aldeia Nova De São Bento, SERPA, BEJA
Narrative
When
1640
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography