APL 2798 Lenda da Heroína do Porto Judeu

Dia 25 de Julho de 1581. O mar azul e calmo olha com brandura a ilha Terceira do Arquipélago dos Açores. Vê-a menina bonita, mirando-se no espelho das águas! É dia de Sant’Iago, dia de festa em terra. Mas, de súbito, as águas do mar encrespam-se como enorme testa enrugada por repentinas preocupações...
Ao largo, a armada espanhola comandada por Valdez faz descer as chalupas, que se vão enchendo de soldados. Depois, essas mesmas chalupas começam a singrar em determinada direcção, rumo à ilha Terceira. Move-se, inquieto, o mar. E em terra, ao serem avistados os intrusos, pelas ruas estreitas começam subindo queixumes e lamentos. Mulheres e crianças, contagiadas umas pelas outras, correm, alarmadas, a esconder-se nos seus lares. A nova corre célere, também: estava a chegar à praia a armada do rei Filipe!
Pálido de emoção, Frei Pedro de Santo Agostinho caminha ao lado dessa gente, que se pergunta como irá ele fazer face a tantos espanhóis. Mas Frei Pedro sabe onde quer ir, e para lá se dirige sem atropelos. Chegado a casa de D. Brianda Pereira e de seu jovem esposo, ambos se apressam a vir ao seu encontro. É D. Brianda quem primeiro o interroga com ansiedade:
— Frei Pedro! Dizei-nos o que há de certo no que se diz para aí?
Frei Pedro baixa o olhar com tristeza e elucida:
— A armada castelhana acaba de acostar a Porto Judeu. Dizem que traz mais de mil homens.
D. Brianda empalidece.
— Mil homens? Mas isso poderá ser o fim da nossa liberdade!
D. Nuno acarinha uma das mãos de sua esposa, tentando acalmá-la.
— Então, Brianda, é preciso não desanimar! Somos quase cinquenta homens habituados a combater!
— E que podem cinquenta contra mil?
— Mostrar ao rei de Espanha que os homens da ilha Terceira não se entregam, nem se vendem!
Frei Pedro tenta harmonizar.
— Não se trata de uma venda! Portugal está agora sob o domínio do rei Filipe. Ele pretende apenas que lhe juremos vassalagem.
D. Brianda grita, quase:
— E achais justo que isso nos aconteça?
Desta vez, o olhar do frade elevou-se até ao firmamento, de um azul desmaiado.
— Só Deus conhece os Seus desígnios!
A revolta brilha, de novo, no olhar e na voz de D. Brianda.
— E pensais que Deus, para satisfazer a vontade de um rei católico, como esse Filipe, irá sacrificar a nossa liberdade?...
Volta a descer, humilde, o olhar de Frei Pedro de Santo Agostinho.
— Senhora... Que posso eu saber da Vontade Divina?
— E julgais que vamos entregar-nos assim?
— Aguardemos com fé e com esperança o final dos acontecimentos!
D. Nuno, que até aí estivera a ouvir o diálogo entre sua esposa e o frade, fez ouvir a sua voz sonora, bem timbrada:
— Frei Pedro! Bem sabemos qual será o final de tudo isto!
Frei Pedro mostrou-se curioso.
— Por que falais assim?
— Porque soube que em Lisboa nomearam comandante-chefe da armada Figueiroa, com ordem de vir juntar-se à armada de Valdez e tomarem a Terceira!
— E por que veio só Valdez?
— Porque desejou talvez antecipar-se a Figueiroa, para colher sozinho os louros da vitória.
— Como sabeis tudo isso?
— Por intermédio de um amigo chegado há pouco de Lisboa.
— Talvez esse amigo nos possa valer agora.
— Não, agora nada poderá fazer. Voltou a partir, justamente, no intento de ir procurar o nosso prior D. António.
— Quando o encontrar… as Terceiras serão de Filipe I de Portugal!
— Não, não o posso crer, Frei Pedro! Mas na verdade não é conversando que impediremos a entrada ao invasor...
E dando um beijo à esposa, dirige-se rápido para a saída. Mas D. Brianda grita-lhe, angustiada:
— Para onde ides?
— Para Porto Judeu, juntar-me aos outros homens. Ainda temos artilharia!
D. Brianda torce as mãos com desespero.
— Artilharia! Chamais a essas três peças de ferro, artilharia?...
— Mas apesar de fraca, se nos demorarmos, até essa mesma defesa cairá em poder do inimigo. Adeus, Brianda!
Mais pálida ainda, a jovem senhora não encontra uma palavra para se despedir do marido. Seus lábios movem-se mas nada dizem. Ele sorri-lhe, a encorajá-la.
— Agradeço-vos a felicidade que me tendes dado!
E voltando-se para Frei Pedro:
— Entrego-vos minha esposa como se a recomendasse a um pai!
Vencendo a emoção, Brianda consegue dizer qualquer coisa nesse momento supremo:
— Ide, meu digno e muito amado esposo! Cumpri o vosso dever! Eu ficarei cumprindo o meu, enquanto tiver alento!
 
O primeiro embate é terrível para os terceirenses. O pequeno apetrechamento de guerra que existia num entrincheirado em breve cai em poder dos homens de Valdez. Os mortos e os feridos começam a fazer número. E o choro convulsivo das mulheres e das crianças sobe nos ares, ali, junto ao Campo da Salga. E é justamente nesse momento de supremo desespero, que a voz fina mas enérgica de uma mulher tenta sobrepor-se a toda essa desordem. É D. Brianda, que em cima de improvisada escada fala às mulheres que ali se amontoam. E pouco a pouco elas deixam de chorar e começam a ouvi-la:
— Com choros e gritarias não conseguiremos dar a vida aos nossos nem liberdade à nossa ilha! Acalmai-vos, mulheres, pois a vossa dor não é menor que a minha dor! E se me conservo de olhos enxutos, é porque acredito podermos fazer algo de mais proveitoso do que chorar!
Era impressionante o silêncio com que as mulheres escutavam agora essa outra mulher, franzina de corpo e atlética de energia. A sua voz continua vibrando no ar:
— Olhai esta arma! Eu a empunharei à frente de todas aquelas que me quiserem acompanhar! Os nossos homens são cinquenta contra mil! E nós, mulheres, quantas somos? Trezentas? Quatrocentas? E os nossos filhos? Outros trezentos? E os velhos? Mais trezentos! Pois somai todos esses números e tereis mais de mil!
Aflito, Frei Pedro tenta acalmar a jovem senhora.
— Que fazeis, D. Brianda? Não teremos armas para tanta gente!
Rápida, a resposta surge:
— Qualquer arma serve, Frei Pedro de Santo Agostinho! Para o Demónio basta uma cruz! Para aqueles que pretendem ocupar a nossa ilha, os chuços, as picaretas, os machados e as enxadas serão armas suficientemente dignas para os expulsar da terra que é nossa! Mais do que as vidas daqueles que amamos, é preciso que tenhamos em mente a defesa sagrada deste solo muito amado! Ide, pois, enquanto é tempo!
As mulheres começam a dispersar. Uma alma nova entra dentro delas.
Vendo aquele quase milagre, Frei Pedro olha toda essa multidão de mulheres de forte vontade e fala-lhes, também:
— Foi Deus que vos iluminou, decerto! Pois ide com a Sua bênção! Quanto a mim, tenho também uma ideia!
Resoluta, D. Brianda pede, com uma nova luz no olhar:
— Dizei a vossa ideia, Frei Pedro!
O frade meneia a cabeça.
— Prefiro agir de surpresa. No entanto, para concretizar o meu plano preciso ainda da vossa ajuda.
— E que devemos fazer?
— Chamar o inimigo para a luta, aqui, neste Campo da Salga.
Mas já uma vozearia enorme vem subindo em direcção ao grupo.
— Olhai, Frei Pedro! Não será necessário chamar os homens de Valdez! Eles aí vêm!
Efectivamente, a luta corpo a corpo parecia ter chegado ao fim e os espanhóis gritavam de contentes. Mas sobre a multidão ecoa de novo a voz de D. Brianda:
— Depressa! Trazei as armas que encontrardes, e mostremos a esta gente que as mulheres também sabem o que significa para um povo a palavra liberdade!
E como por mágica, logo surgem de todos os lados trazendo as mais variadas armas, mulheres e velhos, que caem denodadamente sobre o inimigo. O primeiro movimento dos homens de Valdez é de surpresa perante tão estranho exército. Não tinham desembarcado em Porto Judeu para combater com mulheres e velhos! Todavia o ímpeto de ataque e a ferocidade com que tentavam expulsar o inimigo é tal, que os espanhóis têm não só de defender-se como até refrear a confusão que ameaça implantar-se entre eles.
Entretanto, Frei Pedro desaparecera. Ninguém mais o vira no Campo da Salga. Mas quando já Brianda deixara de o procurar entre os combatentes, eis que uma enorme confusão se estabelece no campo. Sempre lutando como verdadeira heroína, D. Brianda descobre finalmente Frei Pedro, que parece agora procurá-la. Grita-lhe:
— Que se passa? Por que foge o inimigo para o mar, abandonando a luta?
Gritando também, para se fazer ouvir no meio do bulício, Frei Pedro elucida:
— É o meu exército que chega!
Reparando melhor, a jovem exclama, perplexa:
— O gado! O gado bravo atirado sobre o inimigo!
Rindo, Frei Pedro concorda:
— Sim, é o gado! Atirei-o do lado de lá, e os homens de Valdez estão agora entre dois fogos! Como escapadela só têm o mar! Que Deus me perdoe!
A luta foi esfriando. A fuga era total! Olhando os que fugiam e por vezes eram tragados pelo mar embravecido, Brianda gritava:
— Ide, ide dizer a Lisboa como é a gente da Terceira!...
 
Encostado numa almofada, D. Nuno continua pálido pela perda de sangue. D. Brianda olha-o com carinho:
— Quereis descansar?
— Ficai junto de mim!
— Tendes expressão de sofrimento. A ferida é profunda!
Ele tenta sorrir.
— Que ideia! Isto é apenas um arranhão.
Sorri mais ainda.
— E vós, minha bela heroína, não vos queixais?
Ela inclina-se, envolvendo o marido num olhar amoroso.
— De que havia de queixar-me? Se não fosse o vosso ferimento, estaria lá em baixo, na praia, a dançar, como as outras mulheres!
Nuno beija-lhe a mão de dedos brancos, delicados.
— Há pouco, quando a minha vida e a liberdade desta ilha perigavam, conseguistes insuflar nessas mulheres a coragem necessária para lutar e vencer. Mas agora que a vitória é nossa, não creio que tivésseis vontade de dançar ao lado dos cadáveres dos vencidos...
D. Brianda sorri-lhe, mas não responde. É ainda Nuno quem lhe pergunta:
— Onde está Frei Pedro?
— A ajudar a recolher o gado.
— Que ideia luminosa!
— Deve-se-lhe, em parte, a nossa vitória!
— Ficaram loucos, quando viram o gado surgir!
— Pudera! Até eu tive receio, confesso. Naquela confusão toda...
D. Brianda põe a mão na testa do marido.
— Estais febril! É preciso chamar alguém entendido que venha ver-vos!
Suspira fundo e acrescenta:
— E pensar que fui eu a causadora desse ferimento!
— Vós? E porquê?
— Bem sabeis que vos distraí quando vos chamei. Mas, no meio daquele inferno, ver-vos de novo foi para mim tão grato!...
— Também eu senti alegria por voltar a ver-vos. O inimigo é que soube aproveitar-se desse momento em que o meu espírito se evadiu da luta, para vos beijar as mãos.
Os olhos de D. Brianda brilharam mais intensamente. A sua voz tomou uma expressão quase dura.
— As mesmas mãos que racharam a cabeça daquele que teve a ousadia de ferir-vos!
Sorri, de novo, D. Nuno.
— Parecia uma leoa, a minha adorável mulherzinha! Quero que D. António fique sabendo da vossa heroicidade!
D. Brianda desvia o olhar, com modéstia.
— Ora! Fiz o que qualquer mulher teria feito no meu lugar.
— Bem sabeis que não é verdade. Sem vós, a nossa ilha Terceira talvez já pertencesse ao rei Filipe.
Suspira a jovem, antes de lembrar.
— Nuno, meu bom esposo! A armada de Valdez já lá vai. Mas a de Figueiroa não deve tardar!
— Talvez já não se arrisque. Além disso, pedirei para falar com o nosso governador logo que possa levantar-me. É necessário proceder ao imediato entrincheiramento de todos os lugares de possível desembarque.
— Tendes razão. Pedir-lhe-ei que venha aqui estar convosco. Entretanto, descansai um pouco. Tendes falado demasiadamente.
Ele sorri-lhe. Lá fora, a tarde é um verdadeiro hino à natureza!
 
E conta a lenda velhinha que o comandante-em-chefe da armada espanhola, ao chegar às ilhas nesse tempo chamadas Terceiras, teve logo notícia do desastre de Valdez. Costeou então a ilha com a maior das precauções. Vendo-a completamente entrincheirada, não quis o comandante Figueiroa usar de imprudência, e tomou a resolução de enviar à ilha um emissário para que fosse reconhecido ali el-rei católico de Espanha. A resposta veio rápida: «Com todo o nosso sangue sustentaremos a liberdade!»
Ciente de que nada poderia fazer nesse momento que desse honra à sua pátria, o comandante Figueiroa voltou com toda a armada, rumo às pacíficas águas do rio Tejo!

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume II, pp. 347-352
Place of collection
Porto Judeu, ANGRA DO HEROÍSMO, ILHA TERCEIRA (AÇORES)
Narrative
When
1581
Belief
Unsure / Uncommitted
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