APL 3044 Lenda do Castelo de Arminho

Foi ao fim da tarde. Corria o ano de 1160 e era rei de Portugal D. Afonso Henriques. A conquista de Alcácer tinha-lhe valido grande repercussão nos reinos de Leão e Castela e até por terras de sarracenos. Assim, o jovem rei D. Fernando II de Leão pedira uma aliança com o rei português e para esse fim encontraram-se em Celanova. As coisas correram de boa feição e, satisfeito com os resultados, D. Afonso Henriques voltou ao seu castelo, ordenando que viesse à sua presença o jovem D. Nuno Mendes.
Solícito, o cavaleiro apressou-se a apresentar-se ante o seu rei.
— Senhor, disseram-me que precisais falar-me.
O rei sorriu, mostrando a sua satisfação.
— É certo. Preciso dizer-vos que nem tudo são lutas neste mundo.
O jovem cavaleiro olhou D. Afonso Henriques. Um íntimo pensamento atravessou-lhe o cérebro como um relâmpago, enchendo-o de luz, mas, como relâmpago também, essa luz desapareceu, deixando tudo mais negro à sua volta. Como o rei silenciasse, ele, espiando-lhe a expressão, arriscou:
— Gostaria de poder compreender-vos, Senhor!
O rei tornou então:
— Iremos ter alguns anos de paz com Leão! 
Aliviado com o rumo da conversa, o jovem voltou a perguntar:
— Achais que isso será um facto?
O rei sorriu numa expressão franca:
— Acompanhaste-me a Celanova, não é verdade?
— Essa honra me deste!
— Porque a merecíeis! E sabeis também que ali fui para avistar-me com esse jovem e ardoroso D. Fernando de Leão.
— Os tratos foram secretos, mas falou-se muito deles entre a cavalaria...
— E que vos pareceu a conclusão a que chegámos?
O jovem mostrou-se embaraçado.
— Senhor, só vós sabeis o acordo que fizestes. Nós apenas aventámos suposições...
— Pois ireis saber o que ficou estipulado.
— Grande honra me concedeis, Senhor.
— Ouvi, então: a D. Fernando II, filho mais novo de D. Afonso VII, coube por determinação paterna o governo de Leão, Estremadura e Galiza. Ora, a fama das nossas vitórias chegou a Leão e Fernando veio solicitar-me a aliança de Portugal.
— Aliança que aceitastes...
— Sim... com uma condição. Sabeis qual é?
— Não, meu senhor!
O rei olhou intencionalmente o jovem cavaleiro. Depois, com voz firme e pausada, essa voz que tornava as suas ordens indiscutíveis, elucidou:
— A condição é esta: o casamento de Fernando de Leão com a infanta Dona Urraca, filha legítima do rei de Portugal.
A palidez de D. Nuno tornou-se evidente. Os seus belos olhos abriram-se numa expressão de assombro. Murmurou quase, ao perguntar:
— D. Fernando e Dona Urraca irão casar-se?
D. Afonso Henriques tomou uma expressão enérgica.
— Que encontrais de estranho nesse facto? Não é ele rei, jovem e poderoso?
D. Nuno mordeu os lábios e arriscou:
— Mas... Dona Urraca...
O rei interrompeu solene:
— ... é minha filha, bela e prima direita de seu futuro esposo. Que encontrais de mal nessa união?
O jovem cavaleiro, cada vez mais pálido, não encontrou resposta. Mas o rei insistiu:
— Dizei, D. Nuno Mendes...
— Senhor... vossa filha Dona Urraca... é ainda tão jovem...
— Decerto! Mas se o inconveniente é só esse, posso afirmar-vos que Dona Urraca só casará daqui a cinco anos. Mas desde já ficarão prometidos. Assim o quero!
D. Nuno encontrou audácia para sorrir.
— E vós podereis querer, meu Senhor!
— Sim, posso! Dona Urraca faz-se mulher e é linda! Quando menos o esperar pode alguém apossar-se do seu coração.
— Mas vós sois rei!
— Ficaria desgostoso se tivesse de a ferir, impondo-lhe uma vontade que sei ser para ela sagrada!
Tristemente, o jovem murmurou: 
— D. Urraca é demasiadamente dócil para os tempos duros que atravessamos!
O rei português sorriu.
— Achais isso? Pois eu penso que uma mulher nunca será demasiadamente dócil.
— Que Deus proteja a Senhora Dona Urraca!
— Há-de proteger! Seu primo é um homem que sabe agradar às mulheres. E, dessa união, muito de proveitoso pode surgir para Portugal.
Decerto que esse casamento poderá assegurar a paz com Leão...
— E o entendimento necessário para nos ajudarmos mutuamente na dilatação dos nossos territórios, à custa dos sarracenos!
Quase acabrunhado, o cavaleiro D. Nuno anuiu:
— Assim é, meu senhor!
O rei sorriu numa franca expressão.
— Parece que esta união vos não alegra, D. Nuno! Porquê?
Um tanto embaraçado, o jovem respondeu:
— Senhor! O que fizerdes, fareis por bem! Portanto, se essa aliança vos agrada, para maior glória de Portugal, eu me congratulo convosco, Senhor!
A voz do rei tornou-se menos imperiosa.
— Ainda bem que compreendestes! Sabia que poderia continuar a contar com a vossa confiança.
— E porque não havíeis de contar?
O rei tornou-se quase irónico.
— D. Nuno Mendes, eu já tive vinte anos. Sei o que pensava e como pensava. E digo-vos — pela muita estima que vos tenho — que eu teria reagido com menos prudência... Mas conto convosco!
— Podeis sempre contar comigo, Senhor!
— Assim o espero. Ide vós mesmo dar esta nova a minha filha Dona Urraca.
Os belos olhos do jovem cavaleiro voltaram a abrir-se, mas desta vez numa súplica:
— Senhor!...
Enérgico, o rei cortou-lhe a palavra:
— Ide! Assim o quero! Só vós podereis dominar esses tenros treze anos...
E como o cavaleiro continuasse a olhá-lo, desta vez numa súplica muda, D. Afonso Henriques endureceu mais a voz:
— Ide! Porque esperais?
O jovem arriscou:
— Tanto me pede a vossa confiança?
— A pátria pede-vos a vida. Eu peço-vos a felicidade de Dona Urraca.
— Oh, Senhor... se assim fosse!...
— Só vós sabereis prepará-la para que se cumpra a minha promessa. E agora ide sem demora! As feridas devem curar-se enquanto quentes...

Quando a jovem infanta desceu ao jardim, por ordem expressa de seu pai, ficou perplexa por se encontrar na frente de D. Nuno Mendes. Perguntou, não escondendo a sua ansiedade:
— Vós? Mas porquê, a estas horas e com o consentimento de meu pai?
Beijando-lhe as pontas dos dedos com ternura, o jovem cavaleiro patenteou, na voz e na expressão do rosto, toda a tristeza que lhe ia na alma.
— Senhora! Morreram as nossas fugas pelo jardim em noites de luar... As nossas juras de amor trocadas em segredo não têm mais razão de existir... As nossas interrogações sobre o futuro serão desnecessárias, porque o futuro veio bater-nos à porta!...
A jovem infanta ficou ainda mais inquieta.
— Meu pai descobriu que nos amamos?
D. Nuno Mendes respondeu, tentando serenidade:
— Creio que sim… mas não sei como isso aconteceu...
— Então... ele consente?...
A expressão do jovem cavaleiro tornou-se esfíngica.
— O senhor D. Afonso Henriques, nosso rei e vosso pai, tem os seus planos, e pediu-me que fosse eu próprio a transmitir-vos o que houve por bem decidir.
A jovem infanta mostrou-se assustada.
— D. Nuno! Dizei-me depressa o que dedidiu meu pai!...
— Que em Celanova, donde regressámos, ficou assente com o rei de Leão, Galiza e Estremadura que vós, Senhora Dona Urraca, filha do rei de Portugal, sereis esposa de vosso primo!
A infanta empalideceu. No seu rosto de menina surgiu uma expressão de revolta.
— Não! Não quero!
D. Nuno tocou-lhe ao de leve numa das mãos:
— Suplico-vos! Acalmei-vos, minha bela infanta! O que está decidido não terá discussão, bem o sabeis! Este acordo — pede-me vosso pai para vos transmitir — será óptimo para o nosso reino e o de Leão!
A boca bem desenhada da infanta de Portugal teve um pequeno trejeito de choro. A sua voz soou lamentosa:
— E eu, D. Nuno? Eu... não conto?
Profunda e quente, a voz do jovem cavaleiro afirmou:
— Contais, sim! Vós sereis feliz!
— Como... se não amo quem me vão dar por esposo?
— Acabareis por amá-lo. Lembrais-vos ainda do vosso primo, o rei de Leão?
— Vi-o há tanto tempo... e eu era tão pequenina...
— Pois deveis vê-lo agora. Todas as damas casadoiras aspiram a um olhar seu. Sossegai, pois! Haveis de amá-lo… e ele vos amará!
— E vós?
— Encontrarei repouso nas lutas que irão seguir-se contra os infiéis.
Os olhos da bela infanta inundaram-se de lágrimas.
— Oh, D. Nuno Mendes, meu amigo! Como podeis dizer-me tais coisas?! Acreditais que irei esquecer-vos?
— Assim é preciso.
— Porquê?
— Para bem de Portugal e...
A infanta interrompeu o cavaleiro:
— ... e para meu bem?
— Assim o creio!
Ela meneou a cabeça.
— Vereis, D. Nuno, o que o futuro dirá ao mundo! Porém conheço meu pai e sei que, se é essa a sua vontade, só teremos que obedecer!
Beijando respeitosamente os finos dedos da infanta de Portugal, D. Nuno exclamou solene:
— Mil perdões, Senhora!
Ela admirou-se.
— De quê?
— Da forma pouco calorosa como vos expus tão alto assunto...
Por entre as lágrimas discretas, a jovem infanta sorriu:
— Só posso agradecer-vos a forma delicada e altruísta como vos desempenhastes de tão espinhosa missão. Na verdade, meu pai soube escolher o mensageiro. Só de vós aceitaria tão pesado fardo!
D. Nuno apressou-se a esclarecer:
— Neste momento sou apenas um dedicado súbdito de vosso pai e um silencioso admirador vosso!
A jovem mordeu os lábios, para conseguir manter a dignidade que o seu nome exigia e não chorar perdidamente com a fraqueza dos treze anos. Depois, estendendo de novo a mão pequenina ao jovem cavaleiro, murmurou:
— Adeus, D. Nuno! Que o Céu nos proteja... e nos una, já que tão cedo a Terra nos separa!...

O vento zunia com impiedade, arremessando ao rosto dos contendores a terra que em novelos se levantava do chão. O exército de Afonso Henriques caía em massa sobre o dos sarracenos. A luta em campo aberto levantava gritos e imprecações que o vento levava. Os estandartes batiam furiosamente, como pássaros na agonia, cortando os ares. E as vitórias do rei português prosseguiam por terras do Alentejo em direcção ao Algarve. E assim, em pouco tempo, chegaram perto da antiga cidade de Medóbriga.
Aí acamparam os de Portugal. O rei parecia contente. E conversando com um dos seus homens de confiança, pediu que mandassem à sua presença D. Nuno Mendes. O jovem cavaleiro não se fez esperar. Vendo-o perfilado na sua frente, o rei falou-lhe:
— D. Nuno Mendes, sabeis o apreço em que vos tenho. Sois um cavaleiro valente!
Com mais delicadeza que humildade, o jovem sublinhou:
— A vossa confiança dá-me forças para levar até ao fim as minhas missões...
— ... as quais acabais sempre com êxito!
— Mesmo que saia ferido do combate...
Havia um tanto de ironia na voz do cavaleiro D. Nuno. O rei português compreendeu-o, mas não se amofinou. Pelo contrário. Olhou-o atentamente, num ar admirativo, e acrescentou:
— O vosso mérito é indiscutível. Tenho-vos observado em campo aberto e verificado que procurais sempre o ponto mais aceso da luta, o local de mais extrema responsabilidade.
— Cumpro a minha obrigação de cavaleiro.
— Levais bem longe a vossa obrigação...
— Senhor! Talvez um dia possa filiar-me numa ordem fundada por vós. Ordem que me obrigue a viver no claustro, durante a paz, e na guerra a vosso lado, combatendo!
O rei sorriu:
— Bravo, D. Nuno Mendes! Folgo em ouvir-vos! Ficarei agora plenamente descansado sobre algo que me preocupava ainda. Mas estou a desviar-me do assunto que me levou a convocar-vos...
— Dizei, então, Senhor!
O rei respirou o ar da tarde que o envolvia, a plenos pulmões. Depois, o seu rosto tomou aquela expressão grave que assumia sempre que falava de guerra.
— Sabeis que estamos acampados perto do castelo de Arminho
— Assim me foi dito, Senhor!
— Noutros tempos viveram aqui homens de força que o defenderam até à última gota do seu sangue. Mas os árabes chegaram e dele fizeram sua morada.
— Sei que Arminho é uma praça forte dos Sarracenos...
— Mas breve será nossa! Amanhã, assim que o Sol dê indícios de começar a romper, cairemos sobre o castelo — esse famoso castelo de Arminho, que desejo para nós!
— A ideia apraz-me, Senhor!
— Ainda bem! E conto convosco para comandar a vanguarda!
— A vossa confiança em mim não cairá em vão. Arminho será nosso!
O rei sorriu. Fez com a cabeça um sinal de aprovação. O sangue fervia nas veias desse jovem que ficara a seu lado apesar de lhe ter feito conhecer o travo da amargura. E D. Afonso Henriques sentia uma simpatia especial por homens cujo ardor na luta fosse semelhante ao seu. Despediu-o com um gesto amigo. E ficou-se na sua tenda, largamente a pensar.
A tarde morria aos poucos na charneca de terra encarniçada. No firmamento, traços de fogo desenhavam-se, formando um quadro bastante estranho. E o vento, correndo agora mais sereno, parecia murmurar frases de estímulo ao exército acampado.
Bocejando em pequenos sopros de ar puro, a madrugada ergueu-se. Uma luz ténue mas prometedora veio já encontrar em ordem de marcha o exército português. O objectivo estava quase à vista — esse famoso castelo de Arminho que D. Afonso Henriques tanto desejava possuir. Chegada a hora, as hostes dispuseram-se para o assalto. O início da luta soou. Houve um momento de pânico dentro do castelo, mas os portugueses, que atacavam com fúria, sentiram que o inimigo começava a recompor-se. Deram-se as primeiras baixas. De um e outro lado, combatia-se com vigor. D. Afonso Henriques enervou-se. Não esperava tanta resistência. Chamou então de parte o comandante da vanguarda e gritou-lhe, no meio da vozearia geral:
— D. Nuno Mendes! Tereis de cumprir mais uma missão arriscada!
— Mandai, Senhor!
— Ide ao castelo e dizei ao alcaide que, se teimarem em continuar na luta e eu os vencer, passarei todos à espada! Todos! Compreendeis?
— Direi apenas isso?
— Será o bastante para pôr em perigo a vossa e as nossas vidas!
— Compreendo, Senhor. Irei sem demora.
E o cavaleiro, dando de esporas ao cavalo, correu em direcção ao castelo com o pedido de parlamentar. O combate suspendeu-se por momentos. Todos esperavam ansiosos novas de D. Nuno Mendes. Se este não voltasse dentro dum prazo estipulado, o combate continuaria com redobrado ímpeto. De súbito, porém, a figura esbelta do cavaleiro português desenhou-se sobre o muro do castelo e a sua voz, que já se habituara ao comando, soou sonora e firme:
— Não é necessário combater mais porque a fortaleza já se dá!
Houve um movimento de alegria. O porta-estandarte correu a içar a bandeira. E D. Afonso Henriques, erguendo a sua espada, gritou com entusiasmo:
— Que Deus seja louvado e vós, também, D. Nuno Mendes! A vitória é nossa! A vila que fundarei onde já foi outra vila, nossa será também. Mas não se chamará Arminho e sim Seda... já que «se dá!»
E assim, a vila do castelo de Arminho, de remotíssima idade, passou a chamar-se Seda desde essa famosa conquista numa bela manhã em que o vento deixou de soprar e um jovem de sangue ardente e coração destroçado dava tudo por tudo para, nas lutas em prol da dilatação do Portugal, esquecer um grande mas impossível amor.

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume V, pp. 347-354
Place of collection
Seda, ALTER DO CHÃO, PORTALEGRE
Narrative
When
1160
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography