APL 3031 Lenda dos Amores de D. Lopo


No ano de 1637, vivia na cidade de Elvas um moço fidalgo de parca fortuna, chamado Lopo de Mendonça. A sua valentia e porte galante eram conhecidos de quantos privavam com ele. A sua influência no meio feminino era também notória. Não havia festa nas redondezas sem que a presença de D. Lopo fosse solicitada. Certa vez, convidaram-no para ir a Espanha à feira de Zafra, que se celebrava com grande esplendor. À noite houve um baile em casa dos nobres senhores de Ugarte. E ali conheceu D. Mência, que era, sem dúvida, a mais bela das jovens casadoiras. Verem-se e amarem-se foi obra de um instante. E os amigos de D. Lopo não estranharam as suas constantes saídas de Elvas para Zafra.
Em dada altura, D. Lopo regressou apreensivo. Seu amigo D. Álvaro assediou-o, para que se abrisse com ele.
— Conta-me o que tens. Um desgosto aliviado por dois talvez se tome mais leve.
D. Lopo suspirou e disse apenas:
— Por dois já ele está dividido!
— Só te vejo a ti sofrer.
— Porque não ouves nem vês D. Mência!
D. Álvaro sorriu.
— Ah! Afinal… sempre se trata de D. Mência!
— Sim... Trata-se da nossa felicidade!
— E isso é assim tão grave?
— Mais do que pensas!
— Porquê?
— Porque fui pedi-la em casamento e o pai negou-ma terminantemente, pois destina-a a um descendente dos poderosos Ramirez del Prado.
— É uma nobre família e possuem grande fortuna!
— Por isso mesmo ele quer ligá-los à filha. Porém, ela não poderá amar outro que não seja eu!
— Felicito-te pela certeza! Venceres um Ramirez del Prado é já uma grande vitória para nós, portugueses!
— Mas de que servirá essa vitória, se ela foi encerrada no mosteiro das religiosas de Santa Clara enquanto preparam a boda com D. Afonso Ramirez?!
D. Álvaro quedou-se pensativo. Depois perguntou:
— E achas que ela casará mesmo com D. Afonso?
— Assim o creio, mas não terá muito tempo de vida. Foi pelo menos o que me comunicou por intermédio de uma das noviças em que ela achou apoio.
— Ah, sim? Pois isso é óptimo!
— Que achas tu óptimo?
— O apoio dado pela noviça. Talvez ela vos ajude.
— Como?
— Ora, meu caro! Será preciso dizer a D. Lopo de Mendonça o que deva fazer num caso destes?
— Achas que devo empregar a violência?
— Acho que devemos combater com as armas com que pretendem ferir-nos! Empregaram a violência? Pois responde com a violência!
D. Lopo também ficou uns momentos pensativo. D. Alvaro interpelou-o:
— Porque esperas?
— Gostava de ouvir primeiro a opinião de D. Mência.
— Pois escuta-a. Se te ama como mereces, consentirá em fugir do convento. Minha mãe recebê-la-ia em nossa casa. E no dia seguinte casariam em segredo. Depois... que viesse a Portugal D. Árias buscar a formosa filha! Encontraria pela frente seu genro, mau grado seu!
D. Lopo sorriu.
— Animas-me e creio que vou tentar seguir o teu conselho. Hoje mesmo partirei para Zafra. Pôr-me-ei em comunicação com a noviça que estima D. Mência e depois... tratarei do resto!
E estendendo-lhe a mão:
— Obrigado, amigo! Aceito o teu apoio e colaboração no assunto mais caro à minha felicidade!
E despedindo-se de D. Álvaro, D. Lopo montou no seu cavalo e partiu.
 
Era já noite quando D. Lopo chegou a Zafra. Dirigiu-se ao convento e pediu para falar à noviça. Quando lhe expôs o seu plano, ela ficou por momentos assustada. Por fim, combinou que nessa mesma noite falaria ainda com D. Mência e com ele próprio. À uma hora da madrugada. E a essa hora D. Lopo lá estava junto ao mosteiro. Subindo às árvores conseguiu ficar quase em frente da janela gradeada de uma sala de espera. Do lado de lá das grades, D. Mência e a noviça. Ao descobrir o seu bem-amado, a jovem não pôde impedir que as lágrimas lhe corressem pelo rosto. Confessou:
— Julguei que não mais vos veria!
— Porquê?
— Dentro de oito dias meu pai forçar-me-á a casar com D. Afonso de Ramirez!
— Pois antes casareis comigo!
— Como o fareis?
— Estais disposta a tudo afrontar?
— Sim, meu bem-amado!
— Pois amanhã mesmo, a esta hora, subi à torre. Lá encontrareis uma corda por onde eu subirei para ir buscar-vos. Em baixo estarão o meu cavalo e um pagem. Partiremos para Elvas e aí ficareis em casa de D. Álvaro de Figueiredo até ao dia seguinte, em que nos casaremos em sigilo. Estais de acordo?
— E conseguiremos fugir?
— Por que não?
— Seria demasiada felicidade!
— Duvidais?
— É um negro pressentimento. Ides expor-vos demasiado e não quero que vos aconteça nenhum mal!
— E se não tentarmos a fuga, que poderá acontecer?
Houve um pequeno silêncio. Depois, D. Mência concordou:
— Tendes razão! Nada perderemos por tentar! A vida sem vós representa para mim a morte!
— Pois fica combinado! Amanhã, na torre, a esta mesma hora.
— Adeus, meu amor aventureiro!
— Adeus minha dama, pela qual tudo sacrificarei! Até breve!
E saltando, ágil, D. Lopo desapareceu nas sombras da noite.

Um mocho piou ao longe. Um vento fraco agitava mansamente a ramagem das árvores. D. Lopo apeou-se. Olhou o pagem, contratado havia horas. Este parecia desconfiado, olhando para todos os cantos. Ia falar a seu amo, mas este impôs-lhe silêncio. A escada de corda estava, de facto, caída da torre. Era a hora marcada. D. Mência devia estar lá em cima, esperando alvoroçada. D. Lopo preparou-se para subir. Porém, nesse momento, viu-se rodeado por D. Árias, pai de D. Mência, e quatro dos seus servidores. O pagem contratado havia-o traído. Era um dos criados de D. Árias. Quatro espadas avançaram para ele e, nesse instante, D. Árias esbofeteou-o. Ouviu-se um grito na torre. D. Mência desmaiara! Afrontado pela bofetada e por aquela emboscada sórdida, D. Lopo enterrou a sua espada no peito de D. Árias, matando-o. Depois, defrontou-se com mais dois dos servidores do fidalgo espanhol, pondo-os também fora de combate, embora apenas feridos. Os outros fugiram.
Aproveitando a confusão, D. Lopo de Mendonça conseguiu sair de Zafra. Cavalgando sem descanso, chegou a Sevilha. Aí, alistou-se numa companhia que ia partir para Nápoles. Combateu com denodo. Queria morrer com honra, já que não lhe saía da memória a morte que dera ao pai da sua bem-amada.
Um ano depois procurou saber de D. Mência. Tinha professado nesse mesmo convento de Santa Clara. Então D. Lopo voltou aos campos de batalha, onde foi perdendo a vida aos poucos, nos ferimentos recebidos e mal cuidados. D. Álvaro bem tentou dissuadi-lo desse louco empreendimento. Mas o espectro de D. Árias perseguia-o de tal modo que só descansou quando a morte o veio buscar.

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume V, pp. 245-248
Place of collection
ELVAS, PORTALEGRE
Narrative
When
17 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography