APL 2182 O Cão Mau

Jorge Vaz da Cunha foi um fidalgo que viveu aí por 1580 a 1640. Era muito rico e residia no sitio de Amaro Gonsalves. Consta da tradição que por sua morte o povo não consentiu que fosse enterrado no templo da sua freguesia, como então era costume, sendo enterrado fora do adro, que fica em frente da igreja. Sôbre a sua sepultura foi colocada uma campa e aí se conservou ela por alguns séculos até que desapareceu em uma noite, por ter sido arrancada e revolvida a sepultura, sendo apenas encontrado cinzas e ossos.
 Jorge Vai da Cunha era casado com D. Maria Genebra; não consta porêm que dêsse casamento houvesse filhos.
 De criança revelou o nosso fidalgo um génio irritante e bulhento. Dêle se contam muitos casos que em certo modo justificam a alcunha, que o povo acrescentou ao nome e com a qual êle tem atravessado mais de tres séculos — Cão Mau.
 Em certa ocasião passava pelo sítio de Amaro Gonsalves um pobre serrenho com um jumento em que transportava um couro de mel, que ele vendia, de porta em porta, às canadas. Chegando perto do palácio do fidalgo Cunha, saiu-lhe este ao caminho, ordenando lhe vendesse uma canada de mel.
 — Em que vasilha?
 No seu chapéu — respondeu o fidalgo.
 O homem tirou o chapéu, entregou-o ao fidalgo, e foi desatar o pernil, do couro, medindo o mel e despejando-o no chapéu. Em seguida, e num momento rápido, o fidalgo colocou o chapéu na cabeça do pobre serrenho. Imagine-se a sua aflição! Se deixa o pernil para tirar da cabeça o chapéu, perdia o mel que saisse do couro; se teima em conservar seguro o pernil, via-se, sufocado pelo mel do chapéu. Não teve outro remedio: pôz-se a gritar por socorro. Então o fidalgo ameaçou-o de lhe açular os cães, umas feras temíveis. O infeliz não mais berrou, e safou-se da presença do terrível fidalgo, agarrado ao pernil e ao chapéu.
 Os temíveis cães, logo que entravam numa feira e viam a louça exposta, olhavam para o dono como que a esperar um sinal, que só êles entendiam. Dado
o sinal, atiravam-se sobre a louça e reduziam tudo a cacos. Muitos latidos dos cães, gritos dos donos da louça, censuras dos que assistiam, e risadas do fidalgo, mas tudo terminava em bem, porque nunca se negou a indemnisar o dono da louça partida.
 O fidalgo jogava com muita destreza e inteligencia a sua arma favorita, um valente pau ferrado. Quando nos seus passeios encontrava sujeito que desejasse tosar, convidava-o a jogar o pau, mas o convite equivalia a uma ordem. Momentos depois o jogador convidado caía-lhe aos pés com os ossos num feixe.
 Em uma noite passou o nosso fidalgo defronte da porta de uma pobre cabana; chovia torrencialmente. Entrou e encontrou o dono da casa à lareira. Sentou-se ao lado. O pobre homem não tinha nessa noite que comer; e para passar o tempo sem ceia foi avivando o fogo na lareira, dizendo de vez em quando: o fogo é meia mantença. O fidalgo ouviu calado a sentença e saiu na manhã seguinte sem fazer observações. Passado muito tempo teve o pobre homem de passar pelo sitio de Amaro Gonsalves e infelizmente encontrou o fidalgo à porta do seu palácio. Este conheceu-o e ordenou-lhe que entrasse. Era noite. Chegada a hora dá ceia, mandou o fidalgo sentar o homem numa cadeira no meio da cozinha, ordenando que acendessem duas fogueiras, uma por diante e de traz outra, da mesma força, dizendo a rir cinicamente: tens aí mantença inteira! Momentos depois o pobre homem caiu da cadeira quási torriscado!
 Estas e outras proezas fizeram que o fidalgo fosse cognominado o Cão Mau.
 Em um dia morreu, e diz-se que o povo não consentiu que o Cão Mau não só não fosse enterrado no templo, como então era costume, mas nem ainda no adro, que é logar bento. Por isso foi enterrado fora do adro, na extremidade ao poente e voltado para o sul. Aínda hoje o logar em que existiam a sepultura e a campa é apontado por toda a gente.
 — E onde está essa campa e quem foi que a revolveu?
 — Essa sepultura foi revolvida em uma noite por um senhor capitão, vindo de Tavira. Na sepultura somente encontrou ossos e cinzas. Deixou tudo como estava, ficando a campa deitada sôbre a sepultura. Mais tarde desapareceu a campa.
 — Esse fidalgo não teve filhos?
 — Se os tivesse não chegaria até hoje a sua fama de mau.
 — Por que?
 — Dizia meu pai que o fidalgo Jorge Vaz da Cunha, segundo ouvira aos seus avós, nunca fôra um homem mau, e sim um grande patriota. Não podia vêr com bons olhos que os Filipes se sentassem no trono dos nossos reis, nem que os espanhois mandassem na Luz como se fossem seus donos. Por isso quando sucedia encontrar algum espanhol tresmalhado ia-lhe aos fagotes. Raro foi o espanhol que aqui não experimentasse no corpo os efeitos das mãos de ferro daquele valente. Foram os espanhóis que espalharam a má fama do fidalgo e o denominaram, depois de morto, o Cão Mau. Em sua vida não se atreviam a baptisá-lo com aquele nome.
 Depois que o viram morto, como dispunham de Portugal, e desta freguesia, não consentiram que o fidalgo fosse enterrado dentro do templo; e para não encontrar grandes oposições no povo espalharam até que os bois, que transportavam o carro com o falecido para o templo, logo que chegaram à porta do adro estacaram, e não deram mais um passo, sendo por isso que ali o tinham enterrado. Ora se o fidalgo tivesse filhos estes tratariam de destruir a má fama que os espanhois propositadamente tinham feito correr contra o nosso fidalgo.
 Efectivamente, é inexplicavel que um sujeito tão mau nunca se negasse a indemnizar o mal que fazia, estando sempre pronto a pagar os prejuizos causados.
 — E onde está a campa que cobria a sepultura?
 — Não sei: Naturalmente algum curioso quiz descobrir a razão porque essa campa nunca se conservava paralelamente à sepultura.
 — Não o intendo...
 — Dizem, embora eu nunca o notasse, que em certos dias, aparecia a campa de um lado muito enterrada na sepultura e do outro muito levantada: mas tem-se dito tanta coisa do fidalgo que se o senhor quizer reduzir a escrito tudo quanto dêle se conta no Alentejo e Algarve, não encontrará em Tavira papel bastante, em que escreva essas mentiras.
 — E a que atribuiam a facto da campa não se encontrar direita sôbre a sepultura?
 — O nosso povo, sempre inconsciente e dando fôrça de escritura sagrada ao que se diz contra o fidalgo, atribuia o caso a alguma façanha ruim que o fidalgo fosse obrar fóra da freguesia. Eu tenho de mim para mim que o fidalgo Jorge Vaz da Cunha foi um grande patriota, muito valente, muito rico, e muito capaz de repetir ainda hoje as grandes façanhas atribuidas à padeira de Aljubarrota, nas costas de qualquer espanhol. Em toda a parte há sempre um ou outro indivíduo, gracejador de mau gôsto, que, à custa de um ou outro inconsciente, passa a vida a rir e a gracejar. Fingem medos de noite no intuito de atemorizar os fracos, espalham baleias inacreditáveis com o fim de enganar os papalvos, e vão até onde lhes parece, enganando sempre e sempre a rir. Tenho para mim que isso de em certas noites aparecer a campa mais enterrada de um lado e mais levantada do outro não passava de mera brincadeira em que qualquer gracejador entretinha os ócios; se é que o facto se deu, como se conta.
 — Então o sr. João das Ondas intende que é já tempo de restituir ao fidalgo as honras e louvores que êle bem mereceu durante a vida, castigando a ousadia dos espanhois, e manifestando os seus patrióticos sentimentos?
 — Nem mais, nem menos. E visto que me dizem que há por aí quem ainda ambicione um novo domínio espanhol, é necessário fazer reviver os sentimentos patrióticos do muito célebre Jorge Vaz da Cunha.

Source
OLIVEIRA, Francisco Xavier d'Ataíde Monografia da Luz de Tavira Faro, Algarve em Foco, 1991 [1913] , p.212-217
Place of collection
Luz, TAVIRA, FARO
Informant
João das Ondas (M), Luz (TAVIRA),
Narrative
When
17 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography