APL 278 O Cão Negro

Houve em tempos remotos em Mação uma senhora dotada de muita riquesa mas falha de caridade e de espirito cristão.
 Nunca se lembrava dos pobres para os socorrer nas suas miserias.
 Essa senhora tinha uma criada de sentimentos completamente opostos aos dela, achando tudo azado para dar aos desgraçados, e lembrando-se deles constantemente.Quando das refeições dos patrões sobejavam alguns manjares dizia-lhe a senhora: «Come o que quizeres, e o que sobejar de ti deita-o aos porcos.»
 A criada lembrava-lhe então que seria mais agradavel a Deus dar os sobejos aos infelizes que nunca comem nada que lhes alegre o coração, por serem pobres e nada possuirem; mas a senhora, que nem uma sêde de agua mataria nunca a um pobre, por tudo lhe parecer pouco para ela, respondia sempre:
 «Não quero que dês aos pobres aquilo de que necessito para engordar os que me hão de encher a salgadeira! Eu como carne dos meus cevados e não como carne dos pobres!»
 A criada lá ia cumprindo, constrangida, as ordens da patrôa, mas, sempre que podia, repartia, a ocultas dela, algumas sobras das refeições pelos necessitados.
 Passados tempos morre a referida senhora; e, dias depois desse acontecimento, a criada, indo, como de costume, dar comida ao cevados do patrão, notou que junto deles estava um cão negro, comendo com eles na mesma pia, que, com os olhos chorosos olhava insistentemente para ela.
 Ao vê-lo quiz deita-lo dali para fóra; mas ele, encolheu-se, começou a ganir e não quiz sair dali, continuando a comer as viandas dos suinos, pelo que, ela, tomada de dó, deixou-o ficar a comer e foi-se embora.
 Esta scena repetia-se todas as vezes que ela ia dar de comer aos porcos, até que num dia, ao ver a insistencia com que o cão negro a mirava, chorando, assustou-se e foi contar o sucedido a pessoas mais idosas, que aconselharam a que falasse ao cão negro em nome de Deus, e lhe perguntasse quem era, porque se fosse o demonio em figura de cão, ao fazer-lhe o sinal da cruz logo rebentaria, dando um grande estouro.
 A criada assim fez. No dia seguinte, ao ver o cão a comer junto com os porcos, diz-lhe então: «Se és alma do outro Mundo, dize o que queres e se és o demonio eu t’arrenego em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo», fazendo ao mesmo tempo o sinal da cruz.
 O cão negro disse então: «Eu sou a alma da tua patroa ha pouco falecida, que por não ter caridade para com os pobres, proibindo-te de lhes dares os sobejes da minha mesa para os dar aos porcos, fui condenado por Deus a não entrar no Céu enquanto não comesse tantas vezes junto com aqueles animais imundos, quantas te proibiu de consolar os desgraçados!
 Só entrarei mais cedo no Ceu se tu orares a Deus e lhe ofereceres as tuas boas obras em meu favor resgatando os meus pecados.»
 A criada como boa cristã que era, acedeu boamente ao pedido, rogando a Deus o perdão para a ama, oferecendo as boas obras que tinha praticado. Daí por diante nunca mais lhe apareceu o cão negro. Fôra ouvida nas suas suplicas por Deus, salvando-se a patrôa!

Source
SERRANO, Francisco Elementos Históricos e Etnográficos de Mação Macao, Câmara Municipal de Mação, 1998 [s/d] , p.153-154
Place of collection
MAÇÃO, SANTARÉM
Narrative
When
20 Century, 30s
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography