APL 1219 Ponta de Malmerenda

Em tempos remotos, havia em Vila do Porto uma família constituída pelo casal e três filhos. Eram pobres, viviam numa casa coberta de palha perto da igreja da matriz, na rua António Coelho, conhecida por rua dos Pescadores, hoje rua José Inácio de Andrade.
 Era uma família retraída, que pouco convivia com os demais, mas que não incomodava a vizinhança. O seu único modo de vida e sustento era a pesca, pelo que tinha de trabalhar de sol a sol, quer apanhando peixe no mar, quer na venda do pescado. Nunca tinham uma hora de descanso, a não ser quando recolhiam a casa e se metiam na cama pelo toque das Trindades, para se poderem levantar no dia seguinte, ainda de madrugada, para irem para o mar. Os vizinhos, religiosos convictos, tinham o domingo como dia sagrado e estranhavam não haver naquela família nem domingo nem dia santo.
 Um dia, no tempo da Quaresma, alguém lembrou-se de perguntar se não iam assistir às solenidades da Páscoa, que iriam ser abrilhantadas, naquele ano, por um frade franciscano, vindo de fora. A família de pescadores ficou aborrecida com a tentativa de estranhos se intrometerem na sua vida privada. Um dos filhos respondeu:
 — Não temos tempo a perder. Acha vocemecê que as missas engordam? Os que estão constantemente com o rabo sentado nos bancos da igreja são melhores que os outros?
 A pessoa que tinha tentado despertar aquela família de pobres pescadores para a necessidade de uma vida espiritual ouviu e calou. Lá continuaram a fazer a sua vida costumeira e a dedicar os dias de descanso à apanha de lapas para uma melhor merenda.
 Numa manhã de Quinta-feira Santa, dia em que os pescadores açorianos, por fé ou superstição, não vão à costa, quando a maré já baixava, a dita família de pescadores pôs-se a caminho da rocha, com cestos enfiados no braço, levando lá dentro as lapeiras.
 O mar estava calmo, mas ao longe notaram uns vagalhões com sinais de aumentar. Os garajaus e as cagarras faziam uma gritaria doida, refugiavam-se nas furnas da costa, onde tinham, os seus ninhos, pressentindo sinais de mau tempo.
 O pai, mais experiente e sensato, mostrava desagrado com os sinais do mar, mas mesmo assim desceram para as baixas onde havia mais lapas.
 Subitamente uma grande onda avançou com fúria sem que o vento a impelisse, pois o tempo estava calmo. Submergiu as rochas costeiras e arrebatou as cinco pessoas, levando-as para o alto mar, sem que pudessem voltar a terra.
 Como era Quinta-feira Santa, não havia outros pescadores por perto que pudessem dar alguma ajuda.
 Horas mais tarde os vizinhos, saindo da igreja, ficaram alarmados ao ver a casa dos pescadores deserta e pressentiram que tivesse acontecido algum mal à pobre gente. Correram para cima da rocha a fim de confirmarem se lá em baixo havia alguém, mas nada viram. Dirigiram o olhar para o alto mar e, lá ao longe, viram cinco objectos informes que se afastavam cada vez mais, até que desapareceram.
 Compreenderam que eram os corpos dos cinco membros daquela família de pescadores que nunca tinha sentido o apelo de Deus, lançado pelos sinos da igreja matriz, ali tão perto da sua casa.
 Passaram a chamar a essa parte da costa da ilha de Santa Maria a Ponta da Malmerenda porque a boa merenda que aquela família de pescadores desejou acabou por trazer-lhes o mal.

Source
FURTADO-BRUM, Ângela Açores: Lendas e outras histórias Ponta Delgada, Ribeiro & Caravana editores, 1999 , p.31-32
Place of collection
VILA DO PORTO, ILHA DE SANTA MARIA (AÇORES)
Narrative
When
20 Century, 90s
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography