APL 2860 Lenda do Peregrino de Santiago

Certa vez, há muitos anos, três cavaleiros da província de Entre-Douro-e-Minho resolveram ir em peregrinação a Santiago de Compostela. Possuíam apenas os seus cavalos e parcos recursos, para que todos os contratempos que pudessem surgir o Santo os levasse em conta dos seus pecados.
Quando iam já a meio do caminho, viram uma mulher carregando às costas um grande saco e caminhando com dificuldade. Dois dos cavaleiros nem deram pela penosa aparição. O mais novo, porém, reparou no peso da carga que a mulher transportava, e parou o cavalo, perguntando:
— Para onde ides, mulher?
A custo a mulher parou, atirou com a carga ao chão e disse:
— Vou para Compostela.
— Com essa carga?
— É a minha penitência.
— Mas assim não podereis lá chegar. Morrereis pelo caminho!
A mulher olhou o cavaleiro e perguntou, curiosa:
— Vindes do Minho?
— Venho, sim.
— Bem me disse o Apóstolo!
— Que vos disse ele?
— Que levasse esta carga até encontrar um cavaleiro vindo do Minho. Ele me ajudaria depois.
— Como podeis dizer que o Santo vos falou?
— Foi em sonhos. Esta noite dormi em casa de uma pobre velha que nunca tinha visto. Mas ela viu-me tão carregada... Ofereceu-me comida e agasalho. Foi lá que o Apóstolo me apareceu em sonhos.
Os outros dois cavaleiros, ouvindo o que a mulher dizia, desataram a rir. Mas D. João — assim se chamava o mais novo — impôs-lhes silêncio. 
— De que vos ris? Porque não há-de ter o Santo falado com esta mulher? Oiçamo-la e ajudemo-la. Afinal, todos somos peregrinos.
Os outros sorriram mas já não responderam. Então o cavaleiro mais novo desmontou, pegou no saco e colocou-o sobre o cavalo, dizendo para a mulher:
— Caminharemos os dois a pé. O cavalo levará a carga.
Como os outros companheiros ficassem admirados, D. João recomendou:
— Não espereis por mim. Encontrar-nos-emos no Santuário. Daqui a oito dias, a esta mesma hora, ver-nos-emos junto ao túmulo do Apóstolo.
 
Quatro dias passaram. Os peregrinos caminhavam em grupos, descansando aqui, comendo além. Na manhã do quinto dia, D. João encontrou caído na estrada um pobre homem. Debruçou-se sobre ele e perguntou:
— Que tendes, irmão?
O homem, mal podendo falar, explicou:
— Já sou velho e venho de muito longe, a pé.
— Foi talvez esforço em demasia.
O velho meneou a cabeça.
— Sou um pecador e pouco tempo mais terei de vida. Que ao menos Deus me leve em conta esta jornada, como penitência!
— Mas estais muito enfermo. Como podereis continuar?
O velho sorriu.
— Não sei. Talvez me possais aconselhar sobre o que deva fazer. E se mais não me for permitido... que parta hoje mesmo para a presença de Deus.
D. João olhou o cavalo. O enfermo iria bem ali. Mas o saco da mulher que carregara nele? Sorriu, encolheu os ombros e disse alto:
— Seja o que Deus quiser!
Depois, voltando-se para o homem: 
— Podereis seguir viagem seguro no meu cavalo?
O homem teve um olhar luminoso.
— Talvez, meu bom senhor. Mas o que fareis daquele fardo?
O cavaleiro respondeu prontamente:
— Eu o levarei.
E juntando a acção à palavra, retirou o saco do cavalo e ajudou o velho enfermo a montar. Depois ligou-o bem, não fossem as forças faltar-lhe e ele cair. Feito isto, seguiram viagem. À frente ia a mulher, depois o cavalo com o enfermo, e logo atrás D. João, com o saco às costas e agarrado ao bordão do velho peregrino.
O sol era escaldante. O pó acumulava-se nos lábios dos peregrinos. O suor e o cansaço dominavam-nos. Dia e meio depois, D. João começou a sentir os efeitos de uma grave enfermidade. Mas ofereceu a Deus a sua doença como penitência dos seus pecados — pois alguns se contavam na sua turbulenta juventude. Hora a hora, sentia agravar-se o seu mal. Pedia apenas ao bom Apóstolo que o deixasse chegar ao pé do lugar santo e voltar a ver os seus amigos.
No dia aprazado chegaram ao santuário. Já lá estavam, esperando-o, os outros dois cavaleiros. Mas D. João perdera a fala. Vendo-o assim tão mal, os amigos quiseram chamar um padre para lhe dar os últimos sacramentos. Bem os ouvia D. João, mas não podia responder-lhes, nem confessar-se. Desaparecera a mulher e o enfermo com quem viajara. Estava só com os dois companheiros. Sentia a morte aproximar-se e só o afligia morrer sem confissão, embora em pensamento ele pedisse a intercessão de Sant’Iago, logo que chegasse à presença de Deus.
Mais um dia passou. O peregrino parecia ter chegado ao fim da sua jornada sobre a Terra. Os amigos entreolharam-se, espreitando o momento em que D. João iria exalar o último suspiro. De súbito, porém, o enfermo soergueu-se do leito improvisado onde o tinham estendido e exclamou:
— Finalmente! Graças a Deus e a Sant’Iago que me vi livre deles!
Os dois cavaleiros olharam-se surpreendidos. Um deles perguntou:
— A quem vos referis?
— Aos demónios!
Os outros julgaram que ele delirava. Mas ele continuou:
— Sim! Os demónios ataram-me a língua para que não me confessasse!
— E agora?
— Agora... foi Sant’Iago! Não vistes o Santo?
Os cavaleiros voltaram a surpreender-se.
— Não… não vimos.
— Pois estais enganados!
— Nós?
— Sim! Sabeis quem ele era?
A loucura de D. João parecia aumentar. Aflitos, os amigos fingiam acreditar nas suas palavras.
— Não, não sabemos... Dizei-nos quem era...
Sorrindo, D. João explicou:
— Era o peregrino doente!
Os dois amigos não puderam evitar a dúvida.
— Não! Não pode ser!
— Era, sim! Bem o vi agora. E vós não o vistes?
— Não. Agora não passou por aqui ninguém.
— Pois esteve junto de mim. Veio buscar o seu bordão. Depois disse-me: «João, carregaste aos ombros as tuas culpas, emprestaste-me o teu cavalo e caminhaste encostado ao meu bordão. Deus levará em conta tudo isso quando, em breve, chegares à sua presença.»
Os amigos deixaram de lhe falar como se fala a uma criança. Havia algo de grandioso nas suas palavras. Algo de sublime no seu olhar. Um deles perguntou:
— E como foi que Sant’Iago afastou os demónios?
D. João sorriu:
— Se vissem! Alçou o bordão como se fosse uma lança e correu com todos eles num instante! Depois, sorriu-me e afastou-se.
Os dois cavaleiros ficaram estupefactos. Já não queriam duvidar do que ouviam. Mas era tudo tão estranho, tão imprevisto...
D. João conversou com eles durante meia hora. Confessou-se e comungou. Parecia feliz. Pediu aos companheiros que distribuíssem o seu dinheiro pelos pobres, depois de dar algum a pessoas que ele julgava ter prejudicado. Também enviou uma palavra de amizade aos seus familiares e pediu que o enterrassem em Compostela.
Assim fizeram os cavaleiros. Mas antes de saírem de Compostela foram ainda visitar o túmulo do Santo Apóstolo e pedirem perdão de não o terem reconhecido.

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume IV, pp. 41-44
Place of collection
VIANA DO ALENTEJO, ÉVORA
Narrative
When
20 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography