APL 3018 Lenda da Paixão de Eurico e Teuberga

Quando Muça desembarcou em Espanha, veio direito à Lusitânia, e várias cidades caíram sob o ferro da sua espada ou entregaram-se sem grande resistência. Entre essas cidades estava Beja, a então Pax Julia, ou Pax Augusta. Muça impôs aos vencidos certas condições um tanto duras, mas permitiu a saída a quem se quisesse ausentar, deixando os seus bens ao vencedor.
Entre os vencidos estava Eurico, um jovem visigodo, atraente e poderoso, que amava a bela Teuberga com um amor mais forte do que a própria morte. Por ela era correspondido com igual fervor. Estavam ambos para casar quando Muça entrou em Beja. A angústia do povo vencido foi enorme. Receando pela vida do seu bem-amado, a jovem correu ao campo de batalha. Viu Muça, que parou deslumbrado ao descobri-la e lhe perguntou:
— Que fazes aqui, neste campo de confusão?
Teuberga não se mostrou assustada.
— Procuro o que há-de ser meu esposo.
— Vê se ele estará entre os mortos ou entre os que se entregaram.
Ela reagiu com firmeza.
— Eurico é um homem tão valente como tu! Mas sabe ser gentil com as mulheres, mesmo quando é vencedor!
Muça sorriu.
— Sabes quem eu sou?
— Sei. Por isso te pergunto por Eurico. Meu pai comandava as forças da cidade e Eurico era seu lugar-tenente.
O caudilho mouro olhou-a fixamente durante alguns segundos. Depois teve um trejeito enigmático e declarou:
— Devia ter sabido isso antes de aceitar as condições de teu pai.
Ela mostrou-se curiosa.
— Que condições?
— Aqueles que, como tu, possuem bens, podem sair livremente, renunciando a esses bens. E teu pai sairá amanhã para Coimbra.
Teuberga alarmou-se. Perguntou com ansiedade:
— E Eurico?
— Eurico está ferido. Ficará. Não quer perder os seus bens.
A jovem empalideceu.
— E é grave, o ferimento?
— Não. Depressa há-de sarar. E como sou generoso concedi-lhe um lugar de destaque e licença para se casar, em troca da sua obediência. Mal sabia eu que iria conhecer tão de perto a sua noiva.
Ela fingiu não reparar no modo como o caudilho a fitava. E perguntou:
— Onde está Eurico? Quero vê-lo!
Muça tornou a sorrir.
— Vê-lo-ás em breve. Visto que teu pai vai partir, ficarás a meu cargo até que Eurico se restabeleça.
Teuberga franziu as sobrancelhas. Muça perguntou:
— Que pensas?
Veio pronta a resposta: 
— Na razão que levou Eurico a ficar contigo. És o invasor… o inimigo. Como pode Eurico servir-te com lealdade?
— Talvez não sirva com lealdade... mas tem de servir. Foi essa a condição.
— Que condição?
— A de te poupar aos regalos do meu exército.
Teuberga baixou o olhar. Empalideceu. Compreendia o sacrifício de Eurico e o seu grande amor por ela. Houve um silêncio pesado. Depois o caudilho, numa voz menos agreste, perguntou:
— Como te chamas?
— Teuberga.
— Vai! O teu noivo está ali, naquela tenda. Garanto-te que dentro de alguns dias farei a festa da tua boda.
Teuberga olhou o mouro. Ia agradecer-lhe. Mas, ao encontrar o olhar do seu interlocutor, sentiu-o demasiadamente pesado, e um frio estranho percorreu-lhe o corpo. Sem qualquer frase de gratidão, a jovem dirigiu-se para a tenda onde Muça dissera que estava Eurico.
Sorrindo de forma enigmática, Muça olhou o campo conquistado. Encheu o peito de ar, encolheu os ombros a qualquer pensamento ignoto e encaminhou-se numa direcção oposta àquela que a jovem havia seguido.
 
Depois de uma batalha, há sempre uma natural confusão entre vencedores e vencidos que ocupam a terra conquistada. Poucos haviam sido os que tinham ficado em Beja sob o jugo árabe. Esses poucos, ou eram pobres de nascimento, ou ricos que embora conservassem as suas terras eram obrigados a servir o invasor. Estava neste caso o jovem Eurico. Ferido em combate, em breve se restabeleceu. Todavia Muça, exigente e severo, conservava-o sempre perto de si.
Chegou o dia dos esponsais de Teuberga e Eurico. Houve festa, embora os ânimos não estivessem muito inclinados a alegrias. Ricamente vestida, Teuberga estava mais bela do que nunca. Muça dignou-se aparecer na boda. Mas à noitinha, antes de se retirar, chamou de parte Eurico e falou com ele, num ar de misterioso segredo...

A manhã começara a dissipar as trevas da noite quando Teuberga, abrindo os olhos, reparou que Eurico estava de pé junto dela, contemplando-a em silêncio.
Perguntou aflita:
— Vais sair?
— Vou.
— Para onde?
— Não posso dizer-te. Vou sob as ordens de Muça.
— E demoras?
— Talvez horas... talvez dias ou... talvez nem volte!
Ela sobressaltou-se.
— Que dizes? Vais combater os nossos?
— É o que ele me ordenou. Contudo… bem sabes que o não devo fazer!
— Mas isso é uma infâmia!
— Pois é! Que querias que viesse de um homem como Muça?
— Mas ele proporcionou o nosso casamento!
— Sabe-se lá com que intenção!
Teuberga desesperou-se.
— Eurico! Se te acontece algum mal, eu mato-o!
O jovem sorriu, tentando acalmar a esposa:
— Querida, não te precipites! Eu vou já sair. Tenho de deixar esta terra antes do Sol nascer. Mas breve terás notícias minhas. No entanto, na minha ausência, deixa-te ficar em casa. E aconteça o que acontecer, lembra-te de que o meu amor por ti não tem limites! Se para te conservar tiver de combater os nossos… combatê-los-ei!
Teuberga rodeou com os braços o pescoço do marido.
— Eurico, temos de fugir daqui! Deixaremos os nossos bens, tal como fez meu pai!
— Não posso! A terra é nossa. Porque havemos de abandoná-la? Há outros meios de nos escaparmos à tirania. Mas agora fica onde estás. Terás notícias minhas antes do pôr do Sol.
Teuberga apertou mais forte o laço que prendia o marido ao seu peito.
— Espera! Não irás sem que te jure que só a ti pertencerei!...
Ele beijou-a com impetuosidade. Depois, vendo que a manhã ia subindo, retirou do seu pescoço os braços de Teuberga e recomendou:
— Tem cuidado, meu amor! Desconfia de Muça e dos seus! Ele tem de sair da cidade. Cuidado não te leve, sabendo-me longe!
Ela sorriu-lhe.
— Descansa, Eurico! Poderás encontrar como esposa um cadáver, mas nunca uma perjura!
Mais calmo, o jovem despediu-se.
— Até breve, meu amor, e sê prudente!
Ela retorquiu-lhe:
— Para que eu seja prudente será necessário que nada de mal te aconteça. A minha vida depende da tua!
Já fora da porta, Eurico acenou-lhe um adeus. O Sol anunciava já a sua entrada triunfal. Teuberga ficou a olhar o seu amado esposo até que o perdeu de vista. Depois, com a angústia na alma, fechou-se em casa, presa de negros pressentimentos.
 
O Sol, que nascera claro e quente, começara a declinar no horizonte.
Junto a uma janela, Teuberga esperava, ansiosa, notícias de Eurico. De súbito viu que chegavam dois homens para ela desconhecidos. Pediam para lhe falar. Teuberga recebeu-os.
— Que me desejam?
— Teu esposo está ferido e pediu-nos que te conduzíssemos junto dele.
— Onde está ele?
— Numa tenda, a algumas horas daqui.
— Quem o feriu?
— Não te poderemos dizer.
— E quem me garante que foi ele que vos enviou?
— Eis o seu capacete. Reconhece-lo?
E apresentaram à jovem o capacete de aço usado por Eurico. Ela mordeu os lábios. Sentiu uma vontade doida de chorar, mas dominou-se.
— Pois bem: levem-me junto dele.
— Temos apenas dois cavalos. Terás de ir comigo.
Ela hesitou ainda, mas por fim decidiu-se.
— Não percamos mais tempo!
Subiu para o cavalo, com a ajuda do desconhecido, e logo se encaminharam a trote largo para fora da cidade.

Não tinham cavalgado meia hora quando os cavalos estacaram junto de duas tendas. Desmontaram Teuberga e introduziram-na numa delas, dizendo-lhe:
— Vai. O teu esposo espera-te.
Com o coração batendo de angústia, Teuberga entrou. Mas com grande espanto seu, em vez de Eurico, encontrou-se frente a frente com Muça. Ela teve um momento de recuo, mas ele advertiu:
— Se dás um só passo para fugires, Eurico será morto!
Fazendo das fraquezas forças, Teuberga replicou:
— Qualquer de nós preferirá a morte à desonra!
Muça agarrou-lhe os pulsos.
— Escuta!... Não vês como sou poderoso? Comigo serás como rainha! Dar-te-ei o que quiseres, pois amo-te como nunca amei ninguém!
Ela esforçou-se por se libertar.
— Deixa-me! Não vês como te odeio?
— Pois eu amo-te e quero-te! Vou levar-te comigo hoje mesmo. Já devia ter partido. Esperava apenas por ti!
— Não irei!
— Irás, porque é essa a minha vontade!
— Se for obrigada a ir contigo, juro que te matarei!
Muça olhou-a bem nos olhos.
— Tens a certeza de que me odeias assim tanto?
— Não jurei matar-te?
O chefe árabe apertou-lhe os pulsos até a magoar. Depois soltou-a, exclamando:
— Pois fica! Fica com ele! Está nessa tenda ao lado.
Vendo-se liberta, Teuberga saiu da tenda de Muça e entrou na outra. Não encontrou resistência. Na semiobscuridade em que a segunda tenda se encontrava imersa, descobriu Eurico, de perfil, sentado a uma pequena mesa. Correu para ele. Porém, mal lhe tocou, o corpo dele resvalou e caiu no solo. Estava morto.
Louca de dor, Teuberga agarrou-se chorando ao cadáver do marido. A morte era recente. Havia sido apunhalado. Depois, no auge do desespero, atirou-se a um dos guardas, conseguiu arrancar-lhe uma arma e correu em busca do chefe árabe. Porém, um dos soldados atingiu-a com uma seta. Teuberga caiu moribunda. De lábios cerrados, o seu ódio e o seu amor não encontraram evasão a não ser pelo olhar, que aos poucos se foi embaciando. E o seu coração vigoroso, não resistindo ao ferimento, deixou de bater.
Então, o chefe mouro inclinou-se sobre o cadáver de Teuberga, exclamando:
— Foi pena! Tão jovem… tão bela... podia ter tido outra sorte!

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume V, pp. 159-163
Place of collection
BEJA, BEJA
Narrative
When
8 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography