APL 3026 Lenda do Grande Amor de Atacés

Esta lenda nasceu numa povoação muito antiga chamada Manhouce. Foi esta região habitada pelos Romanos. Porém, quando da invasão dos bárbaros, as províncias foram jogadas à sorte e a Lusitânia coube aos Alanos. O seu rei chamava-se Resplendiano; mas foi morto e logo foi jurado seu sucessor o jovem Atacés
Os Suevos tinham como rei Hermerico, o qual governava a Galiza. Hermerico tinha uma filha muito bela chamada Cindazunda. Para que estejam apresentadas as principais personagens desta lenda, só falta indicar a aia de Cindazunda e o lugar-tenente do rei dos Vândalos. E agora vamos à lenda.
 
Quando Atacés, rei dos Alanos, subiu ao trono, grandes festas se fizeram, apesar da guerra em que estavam empenhados. Vieram princesas e príncipes, gente de várias cortes. Entre os convidados estavam a princesa Cindazunda, ainda muito jovem, e a sua aia Ormezinda. Em dado momento, Ormezinda segredou à sua ama:
— Repara, Senhora, como o rei Atacés te olha!
Cindazunda corou.
— Assim é. Já o tinha notado.
— Vamo-nos para outro local onde ele não te possa olhar tanto.
— E porquê, Ormezinda? Não é ele um rei e eu filha de outro rei?
— Mas bem sabes o que se diz no nosso reino. Atacés é muito poderoso e ambiciona unir o reino dele ao teu.
— Pois que os reúna!
— Que dizes? Queres mais sangue a correr?
— Porque haveria sangue?
— Porque ele mira-te, mas não casará contigo. Só ambiciona conquistas! Cedo o seu exército entrará pelas terras que teu pai conquistou. Atacés é um inimigo. Não te iludas!
Cindazunda sorriu. Parecia não ouvir a dama de companhia. Olhava em frente, numa expectativa. Ormezinda seguiu o seu olhar. E viu então que o jovem rei se dirigia na direcção da princesa. Chegando junto dela sorriu-lhe e perguntou:
— Como te chamas?
Sem qualquer retraimento, a jovem retorquiu:
— Meu pai disse-te o meu nome quando me apresentou. É assim tão fraca a tua memória?
Ele voltou a sorrir, agora mais abertamente.
— És pouco prudente mostrando-te tão orgulhosa com o rei dos Alanos, que o é mais ainda. Mas sempre te digo que não cheguei a ouvir o teu nome.
— Porquê?
— Porque no momento em que surgiste na minha frente, tudo o mais deixou de existir. E como não falaste… contemplei-te apenas.
A princesa olhou-o com gaiatice.
— Sou para ti a jovem mais bela desta festa?
— Sem dúvida!
— Pois tu és o homem mais atraente que tenho visto e voltarei a ver!
E sem dar tempo ao rei dos Alanos para impedir a sua retirada, correu para junto do pai. Perto dele estava Karim, o lugar-tenente do rei dos Vândalos. Dir-se-ia extático, tão embevecido era o seu olhar. Contemplava Cindazunda. Mas esta teve um arrepio de medo ao notar tão grande interesse da parte de Karim.

Alguns meses passaram. A luta continuava. Hermerico, o rei dos Suevos e pai de Cindazunda, tomou Lisboa e quase toda à costa até ao Algarve. Porém Atacés, que era nessa época o rei mais poderoso, rompeu guerra com Hermerico, receoso que este se engrandecesse demasiado e lhe fizesse sombra. E porque o seu entusiasmo e força eram superiores, conquistou aos Suevos muitas cidades.
Estavam as coisas neste ponto, quando Ormezinda e Cindazunda, nos seus aposentos favoritos, conversavam. Dizia a princesa:
— Os homens são uns insensatos. Desperdiçam o melhor dos seus anos a matarem-se e roubarem-se mutuamente!
A aia admirou-se.
— Que dizes, princesa?
— A verdade! Que têm feito meu pai e Atacés durante os seus anos de reinado?
— Oh, cala-te, por favor! Teu pai tem alargado o seu reino que era pequeno. É decidido e forte!
— Não te iludas para me iludires! Acaso um rei só é poderoso quando rouba aos seus vizinhos pela força?
— Oh, cala-te! Estás a dizer coisas incríveis!
— Digo a verdade! Basta que penses um pouco sobre tudo isto.
— Como querias, então, que um rei procedesse?
— Espalhando a paz e o amor pelos seus súbditos!
— Para haver paz, teríamos de voltar costas à guerra.
— Pois voltaríamos. Não me importava de ter como pai um rei menos poderoso, mas que desse mais felicidade ao seu povo.
— E os outros? Os outros respeitariam essa paz? Lembra-te de Atacés. Nem esse escapou. São todos os mesmos! Agora, só o rei dos Vândalos nos poderá ajudar.
— Porquê o rei dos Vândalos?
— Porque teu pai, segundo consta, vai pedir-lhe auxílio contra Atacés.
— E que pedirá o rei, em troca?
— Talvez a tua mão para o seu sobrinho Karim.
Cindazunda gritou:
— Nunca!
— E porquê?
— Não sabes que o detesto?
— Porque amas a quem não devias amar!
— Detesto-o porque o acho repelente!
Nesse mesmo instante a aia tapou-lhe a boca com a mão. Parecia seriamente assustada. A princesa perguntou:
— Que tens?
A resposta deu-a uma terceira pessoa que estava escondida atrás de uma coluna.
— Ormezinda assustou-se... porque sabia que eu estava aqui!
A princesa olhou indignada a sua aia.
— Como pudeste esconder dentro da nossa casa Karim, o homem que eu detesto?
A aia não respondeu. Mas Karim adiantou-se:
— Venho buscar-te.
— Com que direito?
— Com o que me dá a razão. Amo-te e podes ser minha. Por que hei-de deixar-te para o outro?
— Porque não te quero. Matar-me-ei se me tocares!
— Atacés é inimigo de teu pai. Acabará por destruir o teu império se o meu tio não te ajudar. E só te ajudará se eu quiser.
Nesse momento ouviu-se grande alarido. Gritavam nas ruas:
— Vem aí Hermerico!... Vai acabar a guerra!...
A jovem correu para fora do aposento e misturou-se com a multidão. Karim, que lhe fora no encalço, conseguiu alcançá-la. Tomou-a nos braços, no intuito de a raptar. Ela gritou. Rodearam-na. Voltaram para o palácio. Karim procurou desculpar-se perante o rei dos Suevos:
— Quis apenas proteger a tua filha que perdeu a cabeça e se misturou com o povo.
O rei indagou, sereno:
— Por que estás entre os meus?
— Porque vim trazer-te auxílio do rei dos Vândalos contra o rei dos Alanos.
— E que pede o teu rei em troca?
— A Turdetânia para ele e a tua filha para mim.
Sorriu Hermerico.
— Chegaste tarde. Diz ao teu rei que estou negociando a paz com Atacés.
— Tu... a negociares a paz... depois do que ele te fez?
— Sim, eu! Essa é a vontade de minha filha e vou tentar realizá-la.
— E Atacés aceita?
— Sim!
— E quais as condições?
— Apenas...
O rei calou-se. Olhou a princesa. Depois tocou-lhe com uma das mãos no rosto:
— Filha, podes escolher entre Karim e Atacés. Ambos pedem a tua mão como medida de paz.
Sem hesitar, Cindazunda perguntou:
— Quem fez a proposta? Foste tu ou o rei dos Alanos?
— Foi ele. Mas podes rejeitar, se o entenderes.
Ela sorriu.
— Pois diz ao rei dos Alanos que não é preciso esconder-se sob disfarce para ouvir da minha boca o que penso dele. Se é tão valoroso como penso, que se descubra e escute.
Com grande pasmo da assistência, um guerreiro que estava perto do rei Hermerico tirou uma cabeleira esbranquiçada e apresentou-se ante a princesa.
— Aqui estou, Cindazunda, para ouvir a tua sentença.
— Não a adivinhas?
— Quero-a confirmada pela tua boca.
— Pois serei a mulher mais feliz do meu e do teu reino se for tua esposa!
Nesse mesmo momento o rei Hermerico deu um grito.
— Prendam Karim! 
Houve alarido. Karim preparava-se para matar Atacés à traição. Mas os homens do rei dos Alanos manietaram Karim e levaram-no. Então o rei mandou que a corte se retirasse. Ficaram apenas dois homens de confiança de Hermerico, dois de Atacés, os dois reis e a jovem princesa.
Frente a frente, os enamorados fitaram-se. Não se podendo conter, Atacés abraçou a jovem.
— Querida! Como pude viver sem ti todos estes meses! Imaginei esta guerra para te possuir, caso quisesses fugir-me! Perdoa-me não ter confiado em ti, não ter adivinhado que me querias também, tal como adivinhaste que viria buscar-te!
Ela agarrou-lhe um dos braços tão habituados à luta.
— Duvidaste… porquê?
— Não sei... Pela primeira vez tive medo!
— Se tivesses escutado com atenção as palpitações do teu peito, terias ouvido a minha voz a chamar-te. Sempre te chamei! Bradava o teu nome na solidão do meu pensamento. Bradava com ânsia, no desejo de me atenderes!
— E aqui estou para todo o sempre! Hei-de amar-te como nenhum rei amou a sua esposa!
— E o nosso reino viverá dias de paz e amor!
Calaram-se os dois. Lá fora, a tarde escondia-se languidamente, embalada ainda pelas apaixonadas promessas de dois jovens belos, de ânimo forte, poderosos e constantes.

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume V, pp. 213-217
Place of collection
Manhouce, SÃO PEDRO DO SUL, VISEU
Narrative
When
5 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography