APL 2886 Lenda da Donzela de Santa Eulália

A existência de Santa Eulália não é lenda. Lenda é, sim, a história que vou contar e que deu origem ao nome de uma povoação do concelho de Elvas. Os factos desenrolaram-se no Alentejo e no tempo do rei D. Afonso III de Portugal. Depois da conquista, o Alentejo ficou despovoado e foi necessário fazer certas concessões a gentes estrangeiras para que as terras donde se haviam expulsado os mouros fossem habitadas. D. Afonso III mandou edificar o castelo de Estremoz. E logo houve quem viesse viver nas suas cercanias, fiado na protecção do castelo, onde o próprio rei se aprazia em ficar.
Um dia, D. Afonso III saiu numa visita de reconhecimento, acompanhado apenas por um dos seus mais dedicados vassalos. Os cavalos trotavam sobre a estrada mal definida, levantando nuvens de pó à sua passagem. A terra estava seca. Havia muito que não chovia e o Sol queimava fundo.
D. Gonçalo aproximou-se mais d’el-rei e preveniu:
— Senhor, creio que estamos a distanciar-nos em demasia.
O Bolonhês sorriu ao retorquir:
— Estais com medo, D. Gonçalo?
Esperava uma resposta negativa, mas outra chegou, embora respeitosa:
— Estou com medo, sim, mas por vós. Ainda não há muito estas terras não pertenciam ao reino.
D. Afonso III retorquiu:
— É dia bem claro.
— Mas não trazeis a comitiva que vos compete.
— Assim o quis. Gosto de visitar as gentes que vieram povoar as nossas terras, sem ser reconhecido.
— Mas não sabemos de onde vieram… e são muitos!
— E ainda bem! Só o braço do homem pode dar vida a um reino.
Calou-se D. Gonçalo. Mas D. Afonso insistiu:
— Não concordais comigo?
O fidalgo respondeu, sempre respeitoso:
— Sim, meu Senhor. Todavia… perdoai se recomendo um pouco de prudência. O castelo ficou lá muito para trás... Nem sequer tem nome, esta povoação.
— Tem já alguns fogos. Talvez tivesse sido baptizada. Vamos sabê-lo.
D. Gonçalo recomendou de súbito:
— Cuidado, Senhor! Está ali alguém escondido!
— Pois vamos desalojar o imprudente.
E avançou com o cavalo para a moita indicada pelo velho fidalgo. Um grito abafado fez-se ouvir e uma linda rapariga saltou para a estrada, fugindo.
O rei gritou então ao companheiro:
— Seguia-a! Metei-lhe o cavalo à frente, mas não a molesteis!
O fidalgo assim fez. A rapariga parou. Olhou assustada para os homens que a perseguiam e juntou as mãos, numa súplica:
— Valha-me Santa Eulália!
O rei aproximou-se. Sorriu. Adoçou a voz.
— Não tremas tanto, que ninguém te faz mal. Quero apenas saber o nome desta terra.
Como resposta, a jovem apenas repetiu:
— Santa Eulália! Santa Eulália me valha!
O rei gargalhou, divertido:
— Chama-se Santa Eulália, esta terra?
A jovem permaneceu calada. Receando que o seu senhor se ofendesse, D. Gonçalo apressou-se a elucidar a rapariga sobre a alta qualidade de quem a interrogava. E repreendeu-a:
— Vamos, responde ao teu rei!
A jovem abriu os olhos num espanto. D. Afonso continuava a sorrir. Ela fizera-se pálida. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. Abriu a boca para falar. Mas a comoção impediu-a. Ele animou-a:
— Então?!... Quero ouvir dessa bonita boca o nome desta terra.
Numa voz cariciosa e emocionada, ela respondeu:
— Não sei, meu Senhor... Viemos há pouco...
As lágrimas começaram a deslizar-lhe pelo rosto. O rei inquiriu:
— Porque choras?
Ela lamentou-se:
— Não sei responder ao meu rei!
— E é isso que te aflige?
— Sim, meu Senhor! Nunca tinha visto um rei... e agora... que um rei me fala... eu não sei servi-lo... Valha-me Santa Eulália!
O rei tentou consolá-la:
— Ouve, rapariga, não chores! Por teu intermédio já sei o nome desta povoação. Sabes qual é?... Santa Eulália!
Foi a vez da jovem sorrir, mesmo através das lágrimas.
— Senhor... isto aqui... onde vivo… chama-se Santa Eulália?
— Pelo menos assim ficará para os vindouros. E tu, formosa camponesa, terás as honras da história, por teres sido uma linda inspiradora. Serás a Donzela de Santa Eulália!
D. Afonso voltou-se para o fidalgo que o acompanhava.
— Vamos, D. Gonçalo! Começa de facto a fazer-se tarde.
E com um gesto de despedida, prometeu à jovem:
— Até breve, formosa donzela!

A promessa do rei foi cumprida. Ainda não havia decorrido um ano sobre este episódio, quando D. Afonso III, sempre acompanhado por D. Gonçalo, se dirigiu para o Sul, a consolidar a posse do Algarve. Todavia fez um ligeiro desvio no Alentejo. Procurava determinada povoação. Dir-se-ia que uma missão secreta ali o levava. Cavalgando sempre, o rei teve um sorriso vago e disse alto, como a concluir os seus pensamentos:
— Tem graça! Agora a povoação parece ficar mais longe!
D. Gonçalo compreendeu de que povoação falava el-rei. Abanou a cabeça e respondeu, cerimonioso:
— Senhor, bem sabeis da apreensão que me assaltou naquela tarde em que tanto nos distanciámos.
O rei não respondeu logo. Abrandou a marcha e fixava as habitações que surgiam a poucos metros. Depois falou:
— Creio que chegámos a Santa Eulália. Sabeis o que me traz aqui?
D. Gonçalo hesitou.
— Senhor... vós não me dissestes ao que vínhamos... Contudo...
— Contudo o quê?
— Penso que o meu rei e senhor deseja falar à jovem que encontrámos há um ano, neste mesmo local.
O rei sorriu abertamente.
— É isso mesmo. Ide buscá-la. Não me convém entrar na povoação.
— E como irei descobri-la?
— D. Gonçalo... não creio que Santa Eulália possua duas formosuras como aquela...
Sorriu o fidalgo e concordou:
— Tendes razão, Senhor. Não haverá outra tão bela, por todas estas redondezas! Mas ides ficar aqui sozinho?
— Não receeis. Decerto não vos ireis demorar.
— Não, meu Senhor. Prometo voltar breve.
Na verdade, pouco demorou o cavaleiro português a desempenhar-se da sua missão. Mas quando chegou junto de D. Afonso III vinha só e entristecido. O rei franziu as sobrancelhas e perguntou:
— Que se passa, D. Gonçalo?
O fidalgo baixou os olhos ao dizer:
— Más novas vos trago, meu Senhor!
— Que aconteceu?
O outro hesitou. O rei insistiu:
— Vamos! Ordeno-vos que faleis!
— Ela está agonizante!
— Como assim?
— Senhor! Disseram-me que de há uns tempos para cá a jovem em questão saía todos os dias para aquela elevação de terreno donde se vê a estrada. Ali se ficava até à noite. A mãe batia-lhe, o pai gritava-lhe, mas ninguém conseguia arrancar-lhe uma palavra. Apenas, a dormir, ouviam-na murmurar: «O rei vem buscar-me!... Vem buscar-me!...» Fecharam-na então em casa, julgando-a louca ou possuída de maus espíritos.
Calou-se D. Gonçalo. O rei murmurou:
— Pobre rapariga!
E olhando o fidalgo:
— Conseguistes vê-la?
— Não tive coragem!
— Pois terei eu!
— Senhor!... Talvez o vosso gesto não seja...
O rei interrompeu-o, duro:
— Sou eu que assim quero!
E dando de esporas ao cavalo, entrou com estrépito na pequena povoação.
 
Quando os dois fidalgos desconhecidos para aquela gente penetraram no quarto da moribunda, a meia-luz que o envolvia tornou mais tétrico o quadro desolador da Morte vencendo a Vida. El-rei D. Afonso III aproximou-se devagar, e inclinou o seu rosto másculo sobre o da jovem que meses atrás tanto o impressionara. A jovem parecia dormitar. Baixinho, ele pronunciou como em segredo:
— Minha bela aparição! Como se chama esta terra? Santa Eulália? Queres que se chame Santa Eulália?...
A rapariga abriu os olhos, fixando-os naquele que lhe falava. Agitou-se na cama. Correram-lhe lágrimas pelo rosto e murmurou num êxtase:
— O meu rei! O meu rei... vem buscar-me!
O rei não quis desiludi-la.
— Sim... venho buscar-te.
— E ides… levar-me… para o vosso palácio?
Ele mentiu:
— Sim...
— E... isto aqui... fica a chamar-se Santa Eulália?
Desta vez o rei foi sincero:
— Sim… e foste tu a inspiradora! Por isso preciso que te cures depressa, Donzela de Santa Eulália!
Ela suspirou. Estava feliz. Mas a sua voz denotava cansaço.
— Esperei... tanto tempo... além... naquele alto...
O rei tocou-lhe nas mãos.
— Sossega! Não podes falar muito. Amanhã virei buscar-te.
A jovem tentou soerguer-se na cama. Dir-se-ia aflita.
— Amanhã… não!
— Porque não?
— Porque amanhã… virá... Santa Eulália buscar-me...
— Que dizes?
— Eu... vou morrer...
O rei sentiu-se emocionado, mas procurou disfarçar.
— Não digas isso... És ainda tão nova!
Ela soltou novo suspiro.
— Santa Eulália... é que o disse... mas não me importo... Afinal… já vi o meu rei… ele veio buscar-me!...
De súbito o seu olhar ficou preso na entrada do quarto. Silenciou por momentos. O rei inquietou-se.
— Que tens? Sentes-te mal?
Ela sorriu então.
— Santa Eulália... veio mais cedo... está ali... chama-me... E eu vou com ela... vou... Adeus, meu...
Não terminou a frase. Descaiu-lhe a cabeça, mas continuou sorrindo para a santa aparição. Benzendo-se, o rei sentenciou:
— Que Santa Eulália te acompanhe, minha querida donzela!
À volta da cama, os familiares romperam em choro. O rei olhava-a, extático. Então D. Gonçalo ousou chamar à razão o seu senhor.
— São horas de partirmos, não achais?
O rei suspirou fundo antes de responder:
— Sim, eu partirei. Mas vós ides ficar, meu leal amigo.
— Eu? Em que posso servir-vos, meu Senhor?
— Desejo que esta pobre rapariga tenha uma última morada digna da sua pureza e formosura.
D. Gonçalo curvou a cabeça.
— Senhor, o vosso desejo é uma ordem. Podeis partir descansado.
Partiu, de facto, o rei D. Afonso III. E a nova povoação de Santa Eulália — que assim ficou a chamar-se por determinação real — não mais esqueceu o faustoso acompanhamento que levou à sepultura a bela jovem cujo nome a História não guardou, mas que ficou a ser para sempre a «Donzela de Santa Eulália».

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume IV, pp. 259-264
Place of collection
Santa Eulália, ELVAS, PORTALEGRE
Narrative
When
13 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography