APL 246 A lenda da moura salúquia

A Lua elevava-se das bandas do Levante, pondo um orvalho de prata nas campinas frescas e perfumadas que circundavam a pequena povoação de Arucci-a-Nova.
 Numa ponta da vila árabe emergia, com soberana altivez, a formosa torre circular, em cujo minarete flutuava o pavilhão sagrado de Islam. Sobre as ruínas da antiga fortaleza mourisca que as hostes cristãs de Afonso Henriques haviam feito arrasar, após um combate heróico com os sarracenos, o chefe árabe Buaçou, companheiro de armas de Miramolim Abinussuf, — o agareno audaz e feliz, que aos cristãos tomara parte das suas conquistas em terras alentejanas, no reinado de D. Sancho I, — mandara construir e fortificar poderosamente o novo castelo e cedera-o como dote a sua filha Salúquia, que aí governava como «alcaidessa». Salúquia era uma moura formosa, sonhadora e supersticiosa como uma boa crente do Alcorão.
 Languidamente encostada à muralha do minarete, Salúquia fitava, num êxtase, o pálido globo, cuja luz a envolvia numa túnica de suavíssima alvura, fazendo incendiar em centelhas de cristal as riquíssimas jóias que lhe matizavam a cabeleira negra e ondulada, e o colo branco duma modelação perfeita. E os momentos corriam sobre aquele recolhimento espiritual e misterioso.
 Fátima e Zuleima, as dilectas companheiras, olhavam com fraternal ternura o perfil esbelto de Salúquia, a querida princesa — irmã, pródiga de sinceridade e de carinhos para com todos, que jamais sentiram a altivez sobranceira da senhora a recordar-lhes a humilhante condição de escravos. Por isso Salúquia era adorada na sua pequena corte. Todas as tardes, mal o sol se escondia para as bandas do mar, a bela moura e a sua comitiva subiam ao minarete, e ali, então, estendendo a vista até ao círculo escuro do horizonte de serranias, passavam largo tempo desfiando lendas de guerra e de amor até à hora solene da oração a Allah, que os lábios murmuravam numa prece de fé vinda do íntimo, com tal elevação e misticismo, como se fora a própria alma a evolar-se da súplica religiosa.
 Cortando o silêncio, Fátima, a moura dos olhos azuis, disse:
«Salúquia, quando o luar tiver beijado as ondas do mar e o sol abrir de novo as portas do Oriente, o teu noivo estará entre nós...
 — Que Allah o permita, Fátima!
 — E porque estás tão triste? — perguntou Zuleima.
 — Por muito o amar! — replicou Salúquia. E por muito temer! — acrescentou numa acentuação de vaga e sombria tristeza.
 — Allah protege-o, e os cristãos estão muito longe! — exclamou Fátima, numa afirmação cheia de confiança.
 E Zuleima, a linda morena, filha de Granada, estendendo os braços na direcção do Oriente, procurou indicar um ponto vago e impreciso.
 — É por ali o caminho… conheço-o bem. Por ele me trouxe teu pai, como cativa.
 Salúquia elevou-se e, com ansiedade, fitou o olhar no sítio que Zuleima queria determinar, e dos seus olhos negros parecia sair uma cintilação de esperança, que a crença misteriosa de um estranho fatalismo não conseguiu amortecer nos primeiros instantes. No entanto, Salúquia pensava por vezes que era infantil e injustificado aquele receio pela sorte do seu noivo, o príncipe mouro Bráfama, alcaide e senhor do castelo de Arucci-Vetus (hoje a vila espanhola de Aroche).
 Bráfama enamorara-se perdidamente da filha de Buaçou e obtivera a permissão para os esponsais.
Salúquia correspondia-lhe com paixão cheia de fidelidade, e uma aurora de amor, que despertava nas duas almas, crescia em apoteose de intenso desejo e suprema dedicação. Era esta a sua última noite de virgem. A madrugada, que dentro de algumas horas iria despontar, traria envolta numa poeira de oiro, a finura adorada de Bráfama, o prometido esposo, o estremecido ídolo da sua imensa religião de mulher enamorada a florir na primavera dos vinte anos.
 A brisa nocturna vinha rescendendo ao perfume suave das laranjeiras toucadas de branco e dos roseirais em flor, como num delicioso consórcio aromático, que tornava a atmosfera tépida e lânguida daquela noite de estio num devaneio sensual, que embalava o coração e embriagava os sentidos. Salúquia, de olhos semi-cerrados, abandonava-se à lúbrica visão que o seu candente amor formava de estranhas e caprichosas alucinações. Parecia que a figura musculosa e varonil de Bráfama a estreitava docemente junto ao peito, encantando-a numa música de promessas venturosas, que a alma ingénua acolhia alvoroçada e receosa, Este prazer íntimo, que ela gozava em silêncio, era dum perturbador enervamento, calmo e absorvente. Apenas, de espaço a espaço, rápidos clarões de sinistra superstição fulguravam, como centelhas dum rubro e sangrento colorido num céu tranquilo de serena esperança. Nesses momentos, o coração apertava-se-lhe numa contracção de dor, o rosto afogueava-se-lhe num rubro de ansiedade, e esta impressão torturante, duma amargura horrível, vinha a cristalizar-se nalgumas lágrimas, que tombaram dos olhos formosíssimos numa cintilação brilhante.
 Fátima, confrangida do sofrimento injustificado de Salúquia, e para a distrair daqueles temores vagos, principiou uma narrativa de aventuras, uma das muitas fantasias infantis que a sua alma em criança recolhera como herança lendária da velha escrava Zara, que havia anos Allah chamara a si, talvez para ouvir os contos lindos da velha moura.
 Dez léguas separavam Arucci-Vetus, a terra do noivo de Salúquia, da povoação onde esta governava como «alcaidessa», distância que se percorria no espaço duma noite, de mais a mais quando o acicate do desejo havia de esporear o cavalo de Bráfama, numa galopada alegre para a felicidade.
 Ao cair da tarde, Bráfama e os seus deixaram Arucci-Vetus e puseram-se a caminho, numa caravana resplandecente de luxo e venturosa galhardia. Era uma cavalgada brilhante, em que os raios do sol, na agonia daquela tarde, punham fulgurações de luz sangrenta no reflexo rútilo das pedrarias dos turbantes dos cavaleiros e dos arreios riquíssimos dos corcéis.
 Bráfama, à frente, o manto de puríssima alvura sobre o arcaboiço forte e esbelto, levava frequentes vezes a mão sobre os olhos, procurando ver através dos raios do sol que se escondia na direcção do mar a torre amada de Salúquia, quando alguma elevação de terreno mais favorável, lhe permitisse divisar a sombra minúscula do castelo, que a alma há muito entrevia antes que os olhos pudessem enxergar. Mas as sombras da noite vieram envolvê-los e, enquanto o globo rubro se escondia sob o dorso das serranias do Ocidente, a lua vinha saudá-los, trazendo-lhes na sua luz as preces e os desejos que Salúquia e as suas damas lhe confiavam, para os deixar cair, como amorosa mensageira, sobre Bráfama e os cavaleiros da comitiva nupcial.
 A noite ia avançando, e a caravana, a quem a fadiga de um rápido trotar foi amortecendo lentamente o ardor festivo, caminhava silenciosamente, quebrando o eco solitário dos vales com o ruído estrepitoso de um tropel apressado, cortado de vez em quando pelo relinchar alegre dos cavalos, nos quais a espuma do cansaço punha manchas alvas sobre a cor negra do pêlo aveludado.
 Das bandas do Levante elevava-se já uma aragem ligeira e fria: as estrelas iam esmaecendo no fulgor, e a porteira do Oriente surgia em toda a lucilante beleza, deixando atrás de si um rasto pálido que gradualmente ia enrubescendo e começando a tansformar em cristais doirados as pequenas gotas de orvalho que refrescavam a terra adormecida. Apenas uma légua separava Bráfama de Salúquia.
 O cortejo mourisco caminhava agora num vale lindíssimo que despertava risonho e florido aos beijos do sol nascente. Umas colinas impediam ainda a visão querida do castelo da noiva.
 Renascera o entusiasmo e a alegria, e a caravana galopava cheia de prazer, colhendo flores das árvores que orlavam o caminho, para as levar, como saudações frescas e coloridas, à corte Salúquia. De súbito, os cavalos deram sinais de inquietação e receio. Relinchavam fortemente e mostravam-se agitados. Bráfarna estacou e a comitiva fez alto. Entreolharam-se todos, surpresos e indecisos. Numa voz rouca de terror, um velho árabe, que seguia ao lado de Bráfama, gritou — além…, e apontava com a mão trémula, uma nuvem de poeira que avançava em turbilhão, deixando entrever armas, que reluziam ao sol, e pavilhões brancos com a cruz da Fé. 
 Bráfarna exclamou:
 — São os cristãos!
 — E vêm para nós! — disse um cavaleiro árabe, moço e destemido guerreiro para quem o fragor dos combates tinha encantos e perigos que o embriagava numa epopeia de heroísmos. Desembainhando, num movimento rápido, a lâmina curva e brilhante, exclamou:
 — Vamos a eles!... Allah seja por nós e atirou o cavalo numa correria doida ao encontro da morte.
 Bráfama reconheceu o perigo inevitável. Os cristãos estavam perto. Era um bando superior em número aos cavaleiros sarracenos; tinham além disso, sobre eles, a vantagem de vir aprestados e armados para o combate, enquanto Bráfama e os seus caminhavam para uma festa de núpcias. Era, portanto, a morte certa, fatal, irremediável. Mas um crente de Allah nunca foge, e encara a morte, sempre, frente a frente.
 Pálido, um pouco trémulo, os olhos quase velados por uma neblina dolorosa que do coração lhe subia, Bráfama encarou a sua gente e disse-lhe:
 — Irmãos… é a morte! Allah assim o quis. E, tirando do peito uma rosa branca que colhera para oferecer à noiva, beijou-a demoradamente, e ao soltar os lábios daquele misterioso beijo, elevou os olhos turvos de lágrimas para o céu, agora fulgurante de oiro, parecendo-lhe ver no fundo azul um castelo em festa, onde uma figura linda de mulher, branca como a lua e formosa como a estrela da manhã que a sua vista ainda há pouco namorava, estendia para ele languidamente o braço, para receber a rosa em que os seus lábios haviam deposto, como num puro relicário, toda a alma dum imenso e infeliz amor.
 Em seguida, voltando-se para a comitiva, disse num tom quase de súplica:
 Se alguém se salvar, leve a Salúquia esta flor, e escondeu-a sob o manto, junto ao coração. Depois, num impulso rápido, renasceu o guerreiro e, sacando com energia o alfange, esporeou o cavalo a defrontar-se com o inimigo. Todos o seguiram com a mesma coragem e rapidez, e o cortejo de núpcias transformou-se numa cavalgada de morte.
 Os soldados da cruz eram comandados por dois irmãos, Álvaro Rodrigues e Pedro Rodrigues, dois heróicos combatentes que vinham assolando o Alentejo, com o extermínio feroz das hostes sarracenas. Chegou o momento supremo. Os dois bandos acometeram-se com um furor de ódio e vingança. Confundiam-se as imprecações selvagens dos discípulos do crescente com os gritos de morte dos defensores da cruz.
 Alfanges e adagas fulgiam em crispações de fogo e em manchas vermelhas de sangue a referver no ódio. Os cristãos, ao fim de poucos momentos, levavam os moiros de vencida. Tinham a vantagem do número e a preparação para a luta naquele momento. Os Árabes resistiam enquanto um sopro de vida lhes animou o braço rijo e destemido. Finalmente, sucumbiram todos. Álvaro Rodrigues matara Bráfama, que tombou do cavalo murmurando palavras que os cristãos não puderam compreender.
 Era preciso agora fazer o resto: tomar a vila de «Arucci-a-Nova». E Pedro Rodrigues lembrou um ardiloso expediente que havia de surtir efeito.
 Imediatamente os cadáveres foram despojados das vestimentas, que os soldados cristãos envergaram soltando gargalhadas e exclamações alegres.
 Álvaro Rodrigues quis embrulhar-se no manto de Bráfama, o seu adversário morto; um soldado trouxe-lho; envolveu-se nele, meio enrolado, procurando ocultar as nódoas vermelhas do sangue do sarraceno, destacando-se como flores rubras sobre a alvura puríssima e brilhante. E, numa mascarada macabra e traiçoeira, o bando cristão encaminhou-se em galope rápido para a vila mourisca, atroando os ares com gritos de simulação festiva e exclamações árabes de saudação e alegria.
 Ao divisar ao longe um turbilhão de poeira que avançava rápidamente, Salúquia e todas as escravas ergueram-se apressadamente num ímpeto de júbilo e curiosidade. Eram eles; em voz trémula, ordenou que fossem abertas as portas da vila e que gente da sua corte lhes fosse prestar as honras da recepção.
 Correram os moiros da pequena terra a franquear as entradas, enquanto sobre o minarete Fátima, Zuleima e a deslumbrante corte feminina da «alcaidessa» preparavam um dilúvio de pétalas de rosas, para caírem como beijos alados sobre o cortejo desejado de Bráfama.
 Os falsos mouros entraram, como uma rajada de sangue, nas muralhas em festa de Arucci-a-Nova. E no ar misuravam-se os ecos alegres das saudações dos Árabes aos gritos de extermínio da legião cristã. Um grupo de agarenos fugiu em direcção ao castelo a avisar Salúquia do traiçoeiro ardil. Era impossível a resistência. A vila estava nas mãos dos cristãos que continuavam a espalhar a morte numa sementeira de ódio religioso, fatal e sanguinolento.
 Salúquia teve, num momento, a visão rápida da tragédia. Pareceu-lhe ver ainda o noivo enviando no sopro da agonia o beijo nupcial, que os inimigos transformaram numa lágrima rubra a gelar na morte.
 A nuvem do fatalismo que parara, como presságio, sobre o seu coração em toda aquela noite, convertera-se na tremenda tempestade de luto, assoladora como um furacão de dor e de desgraça.
 As mulheres árabes soltavam gritos e ajoelhavam, elevando as mãos ao céu numa súplica de desespero e de fé. Lá fora rugia, cada vez mais intensa, a onda de aniquilação saída das adagas dos soldados da cruz, galgando, numa galopada sinistra, o curto caminho que conduzia ao castelo da governadora. Salúquia, figura pálida e grandiosa neste drama horrível, parecia lançar um estranho desafio à legião que a ameaçava, pela serenidade do porte que as lágrimas já não vinham sentimentalizar.
 Numa frase rápida, decisiva e firme, mandou que fossem cerrar as portas do seu castelo (último reduto ainda não conquistado). E, enquanto a ordem foi executada, passeava, serena e heróica, de um lado a outro lado do minarete, afogando o olhar no sangue que corria em toda a povoação, envolta na prece extrema que os lábios dolorosos das suas escravas enviavam a Allah, por suprema esperança de almas perdidas. Trouxeram-lhe as chaves momentos depois, quando ao castelo chegava a vanguarda dos irmãos Rodrigues.
 As portas estavam fechadas. Era apenas um instante de demora, o tempo preciso para as forçar violentamente. E o trabalho começou, reforçado daí a pouco pelos que vinham depois, atroando os ares num ruído formidável que cobria as vozes clamorosas dos sitiados na sua crescente litania de angústia. Salúquia subiu ao ponto mais elevado do minarete, apertando nervosamente numa das mãos as chaves da fortaleza, e num impulso rápido, do valerosa resolução do heroísmo, atirou-se ao espaço. Um espantoso grito de dor aflorou a todas as bocas:
 — Salúquia! — e correram a debruçar-se à muralha do minarete.
 Na esplanada do castelo, pálida e linda, com um fio de sangue a manchar-lhe o rosto num sulco de morte, ela lá estava guardando heróicamente nas mãos fechadas, numa crispação de energia que a morte petreficava, as chaves do castelo árabe, de onde ia abater-se a bandeira rubra do Islam.
 As portas ainda não estavam forçadas, e um dos cristãos ia arrancar brutalmente das mãos de Salúquia as chaves da fortaleza. Álvaro Rodrigues deteve-o. Fez-se na consciência um relâmpago de justiça, e sentiu esmagado o seu orgulho de conquistador perante aquele cadáver que era uma grande lição de heroicidade. Curvou-se sobre a morta e com uma dobra do manto de Bráfama, quis limpar-lhe a mancha de sangue que empanava um pouco a formosura do rosto de Salúquia; nesse momento o manto soltou-se e tombou de oculta prega uma rosa branca, em cujas pétalas havia nódoas estranhas de cor vermelha. E a rosa caiu num deslizar suave, sobre os lábios frios da princesa moura. Era a rosa de Bráfama, que este escondera junto ao coração, e que o golpe mortal da adaga de Álvaro Rodrigues aljofrara num orvalho de sangue. A flor cumpria a sagrada súplica do noivo de Salúquia. O sangue de ambos misturou-se naquele ósculo fatal e perfumado, através das pétalas de uma rosa de misterioso destino.
 O capitão português descobriu-se num gesto de respeito e ordenou homenagens fúnebres, solenes, grandiosas; e como preito imortal ao acto de bizarro valor, proclamou que «Arueci-a-Nova» passaria a denominar-se a vila de Moura.
 E assim, através dos tempos, das raças e das gerações, vai perpetuando a minha linda e adorável terra alentejana a lenda dolorosa de Salúquia, cuja imagem pálida e formosa eu sonho a debruçar-se no velho castelo em ruínas, pelas noites luminosas e odoríferas como aquela do seu noivado de morte, que o destino transformou na manhã vermelha de uma epopeia de supremo heroísmo.

Source
DELGADO, Manuel Joaquim A Etnografia e o Folclore no Baixo Alentejo Beja, Assembleia Distrital de Beja, 1985 [1956] , p.244-250
Place of collection
MOURA, BEJA
Informant
Vitor Mendes (M), MOURA (BEJA),
Narrative
When
20 Century, 50s
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography