APL 688 Historia de Cassima, a Moura Gentil

Era um thesouro de graças esta Cassima. As Mouras encantadas, resa a historia que são princesas. Na verdade, Cassima era bella como a princesa mais formosa, e ella mesma era filha de reis; mas, se o ser princesa é distinção de formosura, Cassima não precisava do dom de nascimento, para ser linda. Era-o, e tanto bastou aos que lhe admiravam a belleza, e a nós que lha adivinhamos.
 Certo rei mouro tinha fortuna admiravel; elle era o seu reino; elle era a posse de suas terras, onde é hoje chão de Portugal; elle era ser pae de três filhas, — três vezes um ceo no mundo!
 Dos altos adarves de seus castellos, o Rei via os territorios do reino, que, com o sangue das suas veias e o dos seus guerreiros, tinha conquistado gloriosamente. Antes de olhar essas terras da sua corôa illustre, fitava os olhos de pae; cheios de doçura e de angustia, na belleza calma e doce das três filhas. Mas Cassima, de todas a mais nova, absorvia-lhe todas as caricias.
 — Vêde os meus remos, — disse elle um dia para as filhas, — como sobre os montes os meus castellos estão vigilantes. Ha pão nos campos, fructos nos pomares, flores nos jardins. Os meus vassallos tem a fidelidade certa do amigo, que nunca falta. Tenho-vos a vós, riqueza dos meus olhos. Devia ser feliz e não o sou.
 Sorria tristemente. Os olhos cansados arrasaram-se-lhe de lagrimas; deixou-as rolar á vontade pelas faces, e foram perder-se-lhe na barba farta. As filhas abraçaram commovidamente o pae, sem o comprehenderem.
 — E não o sou! — murmurava elle para consigo.
 Todos os dias chegavam más novas dos Christãos. Elles corriam Alemtejo abaixo num lampejar de armas, á força da velocidade dos cavallos; as resistencias dos Mouros quebravam-se deante de aquelle impulso; parecia que tinham por si todos os demonios, pois ninguem os esperava, e elles chegavam mais impetuosos.
 Mas era necessario não crêr já nos favores de Allah e na força invencivel do Rei, para que se podesse admittir que os cavaleiros christãos entrariam naquellas terras e desbaratariam aquela gente forte e leal.
 — Receio por vós o futuro de nós todos, — dizia ainda o Rei, dirigindo-se ás filhas.

*

 O Rei teve um sonho e com elle mais se lhe radicou o pressentimento da desgraça. Era um espirito cheio de energia e decisão, mas o futuro das filhas fazia-o tremer de pavor.
 Viu nesse sonho três candeias. Nas trevas do somno accenderam-se as três, uma de ouro, outra de prata, a ultima de bronze. A quadra era escura talvez, não o podia verificar, um subterraneo humido e tenebroso. Abriram-se três portas, que se rasgavam nas paredes em grandes buracos redondos, a cada uma de ellas chegava o clarão avermelhado das candeias.
 Por uma das portas entrou no subterraneo uma menina, vestida de ampla tunica amarella, com a candeia de ouro na mão.
 A segunda porta deu ingresso á segunda donzella, vestida de branco de açucena ao luar; na mão, erguendo-a para se alumiar, trazia a candeia de prata, que brilhava como estrella da noite. A candeia de bronze, com uma chamma pallida, entrou na mão da outra menina, vestida singellamente de verde pallido.
 As três portadoras das candeias poisaram, cada uma a sua, no chão escuro do subterraneo, automaticamente, como não se tendo visto. E, cada uma ao pé da sua candeia, pentearam com vagar os seus cabelos, adormecendo por fim em um somno de mortos felizes.
 As luzes apagaram-se nas candeias de ouro e de prata. Parecia mais intensa a da candeia de bronze, chamma esguia, como lança de fogo de ponta em brasa a furar a treva espessa.

*

 Acordou o Rei, assustado, pelo sonho. De essa vaga scena, em que a noite o mergulhára, ficara a impressão dolorosa de uma saudade indefinida. Ao mesmo tempo que o encantava o mysterio das três meninas e das três candeias do sonho, assustava-o a ignorancia da significação de esse mesmo sonho. Por isso, andava desde então mais triste e acabrunhado.
 — Que será das minhas filhas! — ouviam-no exclamar de vez em quando, nos momentos de maior desalento.
 Era entendido em assumptos de magía. Tinha artes de encantar as pessoas e transformar as coisas. Contava-se de elle um episodio gracioso.
 Um dia foi á caça com alguns dos seus nobres, de mais achegado parentesco ou maior intimidade. Correram os campos em uma cavalgada. Quando, á hora da calma, todos descansavam deitados na sombra, o Rei embrenhou-se na floresta. Ouviu risos de mulher, e acercou-se; foi ter a um ribeiro, onde se banhava um bando alacre de raparigas. Fugiram com brados de susto, apenas avistaram entre arvores o vulto do homem. Apenas uma, talvez menos receosa, ou que não tivesse comprehendido a
razão da fuga, se deixou ficar na agua.
 Desesperou-se o Rei de lhe fugirem assim as banhistas. Julgava-se perto do paraiso de Allah, cheio de bellissimas huris, que o attrahiam com o ruido vivo das gargalhadas. Ergueu as mãos para a rapariga, que ficara no ribeiro a continuar despreoccupada o seu banho, e, com uma oração magica, elle, de olhos cravados nella, transformou-a em roseira. Por muito tempo se viu no meio do ribeiro uma roseira grande, cheia de rosas, rosas aos molhos; e, curiosamente, as rosas cresciam e sempre se abriam para baixo, como lagrimas perfumadas, a cahirem seccas para o ribeiro. Dizia-se que a roseira dava um suspiro de dôr, a cada rosa que lhe cahia na agua.
 Desappareceu um dia a roseira. Ninguem mais a viu, nem nas aguas deram de ella conta. Correu que o Rei encantára a rapariga, a desencantára tambem. O certo é que ninguem conheceu a mãe da tres filhas do Rei.
 — Lá vão as três rosas reaes, — diziam ao vê-as passar.

II

 Havia festa no paço. O Rei abria o seu alcaçar Cassima, a filha mimosa, fazia annos. No cimo do outeiro, até o paço remoçou na alegria da festa; vibrava ao sol de verão, como lampada quando lhe arde lá dentro a chamma viva e se desentranha em luz e calor.
 As salas brilhavam no esmalte dos azulejos em relevo; os reflexos metallicos cobriam as paredes. Estuques alvissimos de laçaria sem fim abatiam sobre as salas a luz intensa, que entrava pelas largas janellas em forma de ferradura. No pavimento de tejolo envernizado incidia o sol, que nos azulejos e nos estuques brancos tirava effeitos de luz admiraveis e alegrava o ambiente.
 O pateo era bello, ao fundo das salas, umas a seguir ás outras; entrava-se nelle como em um jardim ridente, depois de percorrer já com cansaço as salas interminaveis, monotonas na sua repetição. Era rasgado para o ceo, entrava-lhe o sol em cheio. A’ volta abria-se a galeria de arcos redondos, cobertos de estuques coloridos, que vinham tocar o chão com uma grande barra de azulejos. A luz era doce debaixo de essa galeria. Ao meio do pateo jorrava um jacto de agua, que subia direito e se reno como varinha tremula de crystal, e no alto se vergava em forma de penacho, cahindo em murmurios sobre as aguas quietas de uma taça de marmore.
  A’ sombra de um toldo vermelho de damasco, a um dos cantos do pateo, estavam reclinadas em almofadas e coxins as três princesas. Duas negrinhas refrescavam o ar com leques de pennas de avestruz. Andavam pelas salas muitos nobres da Mourisma e reunia-se no pateo, em torno das princesas, a roda compacta dos admiradores.
 No pateo ouvia-se a melodia mansa, indolente, de alguns arabis. Eram harpejos languidos, como saudades vagas do deserto. A voz de um cantor entrecortou a melopeia, cantando glorias de Allah e pedindo bençãos para o Rei. Lá de dentro, das salas, veio o barulho aspero de adufes e pandeiros, indicio de dansa. Crescia o alarido, augmentava a agitação, generalizava-se a dansa, por fim tudo dansava em sarabandas rapidas, ora em movimentos languidos.
 Dos coxins foram arrebatadas as princesas, e o pateo transformou-se em theatro da dansa mais alegre, mais enlouquecedôra. Formavam todos, mulheres e homens, uma grande ronda ao largo da arcada da galeria do pateo. No centro estavam as princesas.
 Cassima executava passos lentos de dansas orientaes; vestida de vermelho suave, lembrava a imagem de uma dansarina do deserto, á sombra de uma palmeira, emquanto a caravana descansa no oasis. Junto de ella, mais lépidas, volitavam as irmãs, vestidas de azul, como borboletas em torno da luz. Casimiras levissimas voavam no impulso das voltas. Aias e escravas formavam-lhes á volta um cordão de côres variegadas, movendo-se rapidas em roda, ora agachando-se, ora saltando, e correndo ou acocoradas ou de pé; cantavam em côro. Fora de toda esta gente, movia-se ao largo da arcada da galeria a grande ronda dos convidados, que animava a dansa com gritos e batia o rythmo com palmas.
 Estava a festa no auge. Era uma loucura. Das salas vinham mais convidados, attrahidos pela grita, e apertavam-se debaixo da galeria. Cassima com um véu nas mãos corria em volta da taça de marmore, onde o repuxo de agua cahia de leve. Todas as mãos, todas as almas se moviam na multidão fremente das dansarinas.
 De repente uma pancada formidavel na porta surprehende os bailarinos. Ficam todos suspensos no ultimo gesto, como se tivessem sido fulminados. Cassima, offegante, deteve-se na posição que tinha, quando o ruido da porta lhe tolheu os movimentos e a consciencia.
 — Abri depressa, — clamam de fóra em voz dura.
 — Ferros abaixo nessa porta, — ordena o Rei, acudindo.
 Dois homens accorreram á porta e deslocaram os ferrolhos pesados com ruidos de ferragens; a porta abriu-se de par em par, com fragor, dando entrada a um homem, sujo de poeira, todo em desalinho e em cujo rosto se adivinhava profunda commoção. Entrou com impeto na sala apinhada de gente. A’ surpresa dos circumstantes succedeu, naquella sociedade luxuosa e apurada, uma impressão de repugnancia e aborrecimento pelo recem-vindo. Conforme poude, aquelle agglomerado humano comprimiu-se, para se não deixar tocar pelo homem que entrava e abria caminho, procurando o Rei; e abriu álas por onde elle passou. Sahiu-lhe o Rei ao encontro.
 — O Rei? Onde está o Rei, que lhe quero dar a mensagem que trago? — dizia o mensageiro offegante e coberto de suor.
 — Eis-me aqui, dize ao Rei a mensagem que trazes! — respondeu-lhe o proprio monarcha em voz forte.
 — Salir... — bradou o homem, ajoelhando-se aos pés do Rei.
 Não disse mais. A commoção abafou-o e elle cahiu desfallecido, batendo com a face nos tejolos do chão. Houve um momento de arrepio. Assustaram-se as mulheres, correram espavoridas. Os homens ficaram estarrecidos, não pelo desfallecimento do mensageiro, mas pelo que receavam da tremendo para elles na emoção do homem ali cahido, após ter proferido uma unica palavra. — Selir. Esta palavra, assim atirada num grito aos ouvidos ansiosos de tanta gente, era uma ameaça ou condemnação?
 Só Cassima teve animo de acudir ao mensageiro. O coração bom venceu-lhe o medo, e levou ao homem certa beberagem, que o obrigou a ingerir com o auxilio das aias, — timoratas, mas induzidas pelo exemplo de sua senhora e princêsa, — e emquanto ellas refrescavam com agua do tanquezinho da sala a fronte do pobre estafeta. Em breve se reanimou. Estava menos gente na sala, e esperava-se impacientemente a mensagem.

III

 — Senhor! — exclamou o mensageiro, depois de refeito; — Salir perdeu-se.
 Não se calcula o pavor produzido por estas palavras. O silencio era profundo. Approximaram-se todos, ainda mais, do mensageiro.
 — Como? — preguntou o Rei assombrado.
 — Foram os Christãos, que tomaram a cidade, — respondeu o homem.
 — Malditos — exclamaram quasi todos.
 — Senhor, o nobre alcaide de Salir, manda-me prestar a Vossa Magestade o seu preito de vassallo fiel, e pede-vos o perdão de não ter morrido na
defesa do seu castello.
 — Conta-me quanto sabes ou o teu alcaide te ordenou, — disse o Rei, com autoridade.
 — Ha três dias, Senhor, que os Christãos estão na posse do castello de nossos antepassados. Há três dias, pela alvorada, as nossas sentinellas deram o alarme. Nos cabeços do Norte, que descem da serra para a plana da costa, divisava-se á luz fraca da madrugada o movimento de vultos numerosos. O sol nascente denunciou, nos reflexos das armas, e no volume da massa de cavalleiros, a iminencia de um ataque dos Christãos. Apesar da noticia que correu logo, fomos apanhados de surpresa. As atalayas da Serra não nos tinham avisado da approximação do inimigo.
 E prosseguiu na descripção. Que em turba-multa acudiu a população inteira, homens e mulheres, á defesa das muralhas. Numa galopada rapida, a hoste dos atacantes cercou o castello. Nobremente mensageiro exclamou com justiça para os contrarios:
 — Era bello de vêr o valor com que se fez a arremetida! O ataque foi egual á defesa. Batemo-nos de parte a parte, como valentes guerreiros, que só tem por lei a honra do seu dever. Sejamos justos.
 Que os cavalleiros christãos, apenas chegaram ante as muralhas, se disposeram á escalada. As primeiras tentativas foram repellidas, mas o ataque era fortissimo, e os Mouros tornavam-se impotentes contra a heroicidade e o arrojo dos Nazarenos.
 — E o alcaide? — perguntou o Rei.
 — Acudia a toda a parte, onde a sua presença era necessaria, — respondeu altivamente o emissario de Salir. — Mas foi impossível resistir mais.
 — Porque não mandastes alguem de vós a prevenir-nos? — voltou o Rei.
 — Era impossivel sahir então da praça.
 Continuava a narração. O alcaide viu tudo perdido. Ordenou então que os thesouros do culto, juntamente com as riquezas d’elle, fossem escondidas, para que os assaltantes não se apoderassem de tudo e o alcaide podesse rehaver, ao voltar quanto estivesse no esconderijo.
 O alcaide tinha uma filha e avisou-a do perigo do desastre. Aconselhou-a a preparar as suas joias e todos os thesouros do pae; ia ser tudo encerrado rapidamente na cisterna do castello, e ella sahiria com as outras mulheres para a Serra da Pena,
acima da povoação; aguardariam o momento opportuno e fugiriam todas.
 Ia rija a batalha junto dos muros do castello. A filha do alcaide, antes de cumprir as ordens paternaes, quis resar uma vez mais a sua oração matinal; subiu aos muros da cerca do castello, onde a muralha era muito alta na escarpa do monte, e voltou-se para Meca, implorando Allah para si e para os seus.
 No entanto o combate ia violento. Os Mouros cediam já, deante das portas da fortaleza. Estavam perdidos. Lá dentro, a multidão ululante desesperava-se e procurava salvar-se, não se importando de acudir á filha do alcaide. Até mesmo aquelles, que deviam executar as ordens do alcaide do castello, se lembraram só de si, guardando ou escondendo o que lhes pertencia e apropriando-se de bens alheios.
 As portas do castello fraquejaram e cederam. Os defensores estavam derrotados, juncando de mortos e feridos o chão do combate. Entravam impetuosamente os vencedores, lavados no enthusiasmo da victoria, augmentado pela furia do odio ao infiel.
 Fugiram pelas portas escusas, viradas para a Serra, sobre o escarpado, os que poderam fazê-lo na ansia de salvar-se, e as mulheres a quem o alcaide, ao vêr o perigo da cidade, mandára ordem do sahirem da praça. Quando os Christãos entravam no castello pelos lados da planicie, sahia o alcaide pela porta da Serra.
 Ia o pobre alcaide tranquillo, seguro da salvação da filha. Como podia elle adivinhar que não tinham sido cumpridas á risca as suas ordens? Qual não foi o seu espanto, quando notou a falta da filha no grupo das Mouras fugitivas!
 — Foi como se lhe tivessem atravessado o coração com um ferro christão, — exclamou indignado o emissario do alcaide — Commoveu-nos a todos aquella dôr de pae. E calculae, Senhor, a nossa commoção, depois da derrota e da fuga!
 O alcaide clamava em altos brados pela filha. Chorava como creança. 
 — Quem me atraiçoou ? — rugia elle. — Quem dos meus me atraiçoou, que vale mais um Nazareno que esse traidor da nossa fé?
 Soube que as ordens não tinham sido transmittidas ou chegaram tarde. Ninguem lhe saberia dizer, porque muitos foram os que fugiram para outros lados, ou teriam, ficado mortos pelos vencedores.
 A noite cahia pesada e triste para aquella pobre gente, pavorosa para aquele pae desoladissimo.
 O luar, compadecido inundou de luz os corpos que dormiam, mas de elles escarneciam as almas, ansiosas. O alcaide subiu á Serra, difficultosamente cheio de pesar. Parou num sitio, muito seu conhecido, de onde podia procurar com a vista a sombra sagrada de sua filha.
 Sobre as muralhas do castello adivinhou um vulto de braços erguidos para o ceo. Era, na verdade, a filha, de joelhos ainda, voltada para Meca; a oração, em que a derrota a vira, não terminára mais.
 — Filha, filha! — chamou desvairado o alcaide. — Minha filha, ouve-me; escuta, meu pobre amor, pequenina do meu coração.
 A voz faltava-lhe na commoção de tamanha amargura. Os gritos que conseguia arrancar da garganta dolorida, perdiam-se na distancia e afogavam-se nos echos da penedia aspera da Serra.
 De pé, como figura de tragedia num pedestal, o alcaide, em silencio, voltou-se para Meca e, depois de estar uns momentos de braços abertos em cruz, desenhou no ar gestos especiaes, que elle acompanhava, murmurando quasi em segredo, com phrases magicas. Pedia o favor de Allah, e invocava-o com aquellas praticas supersticiosas. Por fim, no extremo da commoção, exclamou rudernente, como se respondesse a um pensamento intimo:
 — Antes a veja morta do que prisioneira na mão dos Nazarenos.
 Acabadas de proferir estas palavras o alcaide cahiu por terra, sem sentidos. Quando os seus o procuraram, foram encontrá-lo no chão. Reanimaram o desolado velho com palavras de carinho e de affecto, lastimando-lhe a sorte da filha. E, elle cheio de esperança, a voz velada pelas lagrimas e pelo fundo respirar, disse:
 — Voltaremos ao nosso castello, se Allah o quiser. Será breve. Havemos de nos apossar outra vez do castello dos nossos avós, e salvarei a minha filha. Minha pobre filha! Então te desencantaremos. Até lá, será breve, se Allah quiser.
 Chorava se em redor.
 E um leão enorme, de juba alçada, fogo nos olhos, subiu á muralha, sentou-se ameaçador ao lado da filha do alcaide, a guarda-la emquanto os Mouros não voltem e o pae lhe não quebre o encanto. De noite lá estará o leão. De dia ninguem a verá. E o seu vulto branco de virgem branca terá junto de si a sentinella vigilante e feroz do leão.
 — Bemdito Allah! — exclamou-se da multidão, que no alcáçar do Rei ouvia a narração do emissario.
 — Porque não vieste mais rapido? Talvez acudissemos a tempo, e Salir se não perdesse!
 — Senhor, — disse o mensageiro em resposta ao Rei, — estavam tomados os caminhos.
 — Rodeavas o caminho, — bradou ainda o Rei.
 — Para chegar hoje, e como vêdes, foi necessario que corresse de noite ao luar, e me escondesse de dia. A volta foi enorme, e a montanha é aspera. Allah não nós ajuda. Perde-nos. — De mãos apertadas na cabeça desgrenhada, gritava num arrebatamento. — Perde-nos, perde-nos. Allah atraiçoa-nos a esperança.
 — Cala-te, não blasphemes. — Ordenou o Rei. — Que castigos queres attrahir sobre nós? — Voltando-se para uns homens da comitiva, disse-lhes:
 — Levae este homem, que está cansado, e desvaira.

IV

 Zara, Lydia e Cassima eram as tres filhas do Rei. Formosas todas, nenhuma porém suplantava a formosura de Cassima. Zara tinha cabelos de ouro, vestia-se com preferencia de amarello, como um gira-sol. Lydia, excessivamente branca, de um brilho singular na pelle macia e fios de petalas de rosa, trazia ordinariamente uma tunica branca, presa na cinta por um cordão de prata.
 Cassima, a moura gentil, era morena. Os cabellos negros cahiam-lhe em bandós no vestido verde pallido, com bordados lantejoulados de prata, que era da sua predilecção.
 O pae adorava-as a todas. Mas a Cassima, se elle podesse, pô-la-hia ao lado de Allah, no paraíso das milhares de huris, estonteantes de beleza, para que todo o mundo e Mahomet, o propheta, por todo o sempre a adorassem.
 — E’s linda como tua mãe! — murmurava o Rei tão baixinho que elle mesmo não ouvisse, quando ás vezes se embevecia a contemplar a filha.
 E ao certo ninguem lhe sabia da mãe.

V

 — Os Nazarenos! — gritou no alto de uma torre do castello uma sentinella vigilante.
 Toda a gente se aprestou rapidamente para defender a praça. Depois da tomada de Salir, a vigilancia redobrou, porque os Christãos, estimulados pelos ultimos exitos, subiram de audacia. Esperava-os o Rei, consciente da sua força, para os castigar. A derrota dos Christãos não seria surpresa, porque os preparativos do Rei eram ajudados por todos a quem os ultimos desastres encheram de furia sagrada, e todos se sentiam capazes das ultimas heroicidades para desfazer o impeto christão.
 Mulheres e homens correram breve ás muralhas. Nas ruas acendiam-se fogueiras; prevendo tudo, o Rei mandára reunir montes de lenha em diversos sitios da cidade, e era com ella que se faziam fogueiras. No lume, em grandes caldeirões, fervia-se agua e pês, com que dos adarves das muralhas atirariam sobre os sitiantes. A gritaria foi grande. O borborinho, causado por quantos se apressavam a defender a cidade, produziu uma barafunda incrível. Empurrava-se a multidão nas ruas. Ondas de homens açodados embatiam-se ao encontrarem-se nas esquinas, e espadas contra espadas, lanças contra lanças, chocando rijamente na carreira uma com as outras, enchiam o alarido com os ruidos metallicos.
 Soavam businas, e o som estridulo cortava os ares, onde ficava por momentos a vibrar.
 Os cavallos tropeavam nas pedras largas das ruas, levando ás portas e á campina, em redor do castello, a chusma de cavalleiros arabes, que iam ao encontro dos Christãos.
 Foi tremendo o choque entre Christãos e Mouros. A principio os Mouros iam levando de roldão na sua frente o inimigo. Mas, a breve trecho, este foi reforçado por novas turmas de cavalleiros, e os Mouros, embora resistissem com valentia, foram repellidos para o castello.
 Ficavam para trás feridos e mortos. A galopada vertiginosa fazia-se por cima de uns e outros; — os corpos misturavam-se na dôr e na morte. As portas da cidade abriram-se de par em par. Os Mouros approximavam-se a toda a brida, acossados pelos Christãos, que lhes matavam os da rectaguarda. Outros esperavam os fugitivos, para defenderem as portas. Do alto das muralhas cahiu sobre os Christãos uma chuva de settas e de pedras. Emquanto elles hesitavam, os cavalleiros mouros penetravam nas muralhas, e as portas fechavam-se rapidamente sobre elles. Foi de momento a salvação do castello.
 Espalharam-se em volta os cavalleiros de Portugal. Disposeram todas as medidas de cerco, bloqueaado por completo a cidade. Chegava o desespero dos sitiados, que attingiam já o derradeiro apuro.
 Convenceu-se o Rei de que tudo estava perdido e nada havia a esperar. A defesa era em verdade heroica, mas tudo ia faltando; e os Christãos tudo tinham, desde ós viveres, que não faltavam, aos reforços e á esperança de vencer. Os sitiantes entrariam muito brevemente no castello.
 Então, o Rei subiu ao alcaçar no ponto mais alto da cidade, e procurou as fiihas, que, conhecedoras do estado periclitante da defesa, choravam de afflicção. Pelo alcaçar deserto ressoavam os soluços doridos das três princesas. Abraçou-as o pae, commovidamente, apertando-as contra o seu coração leal.
 — Sossegae, minhas filhas, — disse-lhes elle, consolando-as, — no tenhaes receio. Allah deu-me o segredo da magia. Defenderei a vossa belleza e a vossa honra. Nem tudo está perdido. E no momento do perigo, quando o inimigo infiel penetrar nos nossos baluartes, lembrar-me-hei de vós, e sereis salvas. Ide sossegar no somno as vossas penas.

*

 Era noite. A cidade estava em silencio, emquanto o guerreiros descansavam das violencias da lucta.
 Só no alto da torre da mesquita, o almuadem lembrava aos fieis a grandêsa de Allah e o proveito da oração. — Que a oração é mais proveitosa que o somno, dizia elle. A voz arrastada tinha lastimas de desgosto.
 Mal se reclinára no leito, o Rei. O almuadem clamava lugubremente, exortando a oração.
 Assim succedeu outras duas noites. As fogueiras ardiam nas ruas, e cortavam as trevas da noite com clarões de incendio. As labaredas illuminavam tragicamente as casas; entre o crepitar das chammas ouvia-se a voz do almuadem — a oração é mais proveitosa que o somno.

*

 Estava tudo perdido. Nenhuma esperança de salvação subsistia, O Rei decidiu salvar as suas filhas, para quem era eminente o perigo.
 Do lado mais escuro das muralhas da cidade, havia a porta secreta, por onde o Rei sahia do castello. De lista estava occulta por um cannavial, de cannas altas como lanças, cerrado e baixo; verdejavam na agua corrente, que uma fonte proxima lhes atirava, sem cessar, para as raizes avidas de humidade e frescura.
 Por essa porta sahiu o Rei com as filhas, quan do chegou o momento de as pôr a salvo das vio lencias dos vencedores. De noite as levou, através do carmavial, para junto da fonte, que cantava na sombra canções de tristeza.
 Entre soluços, despediu-se das princesas. Um cantico sereno se ouviu melodiosamente no silencio da noite, mais desolada e silenciosa, depois do ruido brutal da peleja do dia. Servindo-se de orações magicas, o pae encantou as filhas. Ninguem sabe como; no entanto, elle regressou triste ao castello, curvado pela dôr como um chorão á beira do cemiterio, e voltava só, tendo por lá deixado, junto da fonte, as filhas estremecidas, entre as quaes a dulcissima Cassima, de tão gentil vulto.
 Chorou o Rei lagrimas de desespero e de saudade. Nos salões do alcaçar era alma errante, que rugia lamentos e arrancava os cabellos.
 — Tudo perdido! Ai de mim! — exclamava soturnamente como um phantasma.
 O combate do dia seguinte foi formidavel. Era o ultimo esforço dos sitiados e a suprema audacia para quem era imminente o perigo, dos sitiantes. Cahia a noite. Os Christãos entraram na cidade; os Mouros fugiram para o mar, e embarcaram em almadias para Tanger.

VI

 Salir! Não voltaram os Mouros á posse da praça. E a filha do alcaide não quebrou o seu encanto.
 Todas as noites a vê muita gente. Veste sempre de branco. O vulto airoso paira sobre as muralhas do castello mourisco. Ao lado, manso para ella como um cachorro, iá está o leão vigilante, cujos olhos lampejam na sombra da noite. Ouve-se rugir cavamente, quando alguem passa a pequena distancia. Ninguem ousa approximar-se.
 Ao luar tem os dois, — ella branca, o leão escuro e de forte vulto, — o aspecto e a sombra forte de um grupo de marmore e bronze.
 Se ha vento e a noite é tenebrosa, da muralha vem a toada triste de um canto de mulher, o qual as rajadas da ventania fazem mais triste, arrastando-o aos pedaços como folhas desfeitas; é a Moura a soluçar, na sentida melodia, as queixas da sua desgraça, que Allah não finda; ouve-se no vento a harpa tangida, em que se acompanha no canto suavissimo. Depois pára, e o silencio do canto é cortado pelos soluços angustiosos, que o vento espalha.
 Pobre Mourinha! Lá ruge o leão, e a noite, de pavor, treme na ameaça do rugido feroz. E não voltam os Mouros, para acabar aquelle soffrimento da Moura, e pôr fim aos sustos, que o leão traz nas almas!

VII

 Andavam piratas mouros pelas costas do Algarve. Pescadores, que se descuidassem, pairando muito longe da terra, ou não se preparassem a fugir apenas vissem ao largo velas desconhecidas eram aprisionados pelos piratas e levados para Marrocos. Por vezes os Mouros aportavam á noutinha em qualquer local da costa, desembarcavam sorrateiramente e cahiam como aves de rapina sobre as povoações adormecidas, levando prisioneiros, riquezas, talando os campos arrasando colheitas.
 Quando ao ruido de guerra dos piratas, que chegavam e assaltavam as primeiras casas, se ouvia o grito de — os piratas! — já elles estavam dentro da pavoação na sua obra damninha e cobarde. Assim se vingavam da perda irreparavel da terra, e cumpriam o fadario do instinto de rapina violenta.
 Os prisioneiros iam captivos para as cidades de Marrocos, onde eram vendidos como escravos nos mercados públicos, em proveito dos piratas, que os prenderam.
  Um dia o velho Rei, pae de Cassima, teve necessidade de adquirir um escravo, e comprou um christão português, que viu no mercado. Forte, espadaúdo, aspecto de bondade agradou-lhe. Ao vê-lo melhor, convenceu-se o Rei de que o conhecia, pois o teria visto em qualquer parte:
 — Quem és tu? — preguntou-lhe o Rei.
 — Um escravo christão, —respondeu-lhe o homem em português, tendo reconhecido o Rei.
 — Conheces-me? Não te lembras de mim? — interrogou-o ainda o Rei.
 — Não, meu Senhor, — disse-lhe seccamente o escravo.
 O Rei não se desconvenceu. Continuava elle a affirmar a si proprio que conhecia aquelle homem. Pensou. Levou toda a noite a rebuscar na sua memoria quem seria e de onde lhe vinha a vaga reminiscencia de o conhecer. Depois de muitos esforços, lembrou-se de que o escravo devia de ser um carpinteiro, que lhe apainelou os salões reaes do seu alcaçar de Loulé, a querida capital dos seus territonios algarvios. E no dia seguinte chamou o escravo e falou-lhe.
 — Corno vieste parar aqui?
 — Fui aprisionado á traição pelos vossos piratas, — respondeu o escravo, altivamente.
 — E onde te aprisionaram eles?
 — Nos campos da Quarteira, ao pé da ribeira de Algibre, quando trabalhava numa casa do Senhor de Boliqueime.
 Comprehendeu-o o Rei e teve a confirmação da suspeita. E de ahi preguntou-lhe á queima-roupa:
 — Tu és de Loulé?
 — Sim, meu Senhor, — exclamou novamente o homem, ao ver que o Rei Mouro o tinha reconhecido.
 — Que novidades ha por lá?
 — Nenhumas, que vós não saibaes. Tudo como o deixastes, só os Christãos em vez dos Mouros.
 — Não consta nada por lá, que se diga das minhas filhas? — disse o Rei com curiosidade.
 — Que estão encantadas, é o que se diz, e que foi o pae quem lhes deu o encanto, pois que foi visto sahir com ellas, e regressou ao castelo, sózinho e cheio de afflicção:
 — Sou eu o velho Rei de Loulé, e pae das três joias de estimação, que eram minhas filhas! — Ao clamar estas queixas, o Rei abraçou o seu escravo, chorando angustiosamente. De subito ergueu-se deante do homem, olhou-o bem, mediu-o de alto abaixo, e, mais vociferando que fallando, exclamou com impeto:
 — Quero dar-te um grande trabalho. Vaes desencantar as minhas filhas, que para isso te dou poderes. Dou-te por ellas a liberdade e riquezas enormes. Livra-te de me trahires, que não escaparias no fim do mundo aos meus poderes. Promettes-me cumprir a minha vontade?
 — Vós sois o meu senhor. Eu sou vosso escravo. Mandaes, e eu cumpro as vossas ordens. E’ de minha vontade obedecer-vos. Juro por Nosso Senhor Jesus Christo, que morreu na Cruz para remir o mundo inteiro do peccado; juro que cumprirei a minha palavra. Vou.
 Lembrou o escravo que tinha sua mulher e os filhos ao desamparo, e para quem o regresso ia levar alegria; e o cumprimento da palavra empenhada trazia fortuna, jámais sonhada.
 — Aceito e acredito o juramento, que fizeste, — exclamou o Rei; e com decisão, voltando-se para o escravo, disse-lhe: — Anda commigo.

VIII

 Rei e escravo dirigiram se através de salas e salas para um quarto, onde estava grande numero de arcazes de bellas ferragens. A luz entrava do alto e imprimia um ar de mysterio àquelle interior. As paredes brancas reflectiam a luz, e a quadra parecia alegre. Em toda a volta, encostados ás paredes núas, enfileiravam-se os arcazes.
 O Rei dirigiu-se ao arcáz mais rico; áquelle cujas ferragens eram maiores e refulgiam melhor á luz, Abriu-o; de dentro sahiu o perfume suave de madeiras velhas e de hervas seccas, Tirou de lá três pães e uma larga bacia de prata; pousou a bacia no chão, e, com um jarro de agua, encheu-a a trasbordar. Traça por cima da bacia varios signaes, que as suas artes magicas conheciam, acompanhando os gestos com palavras secretas, de que o carpinteiro, a arder em curiosidade, nada comprehendia.
 — Toma estes três pães, — disse elle por fim para o escravo, entregando-lhe os pães; — repara bem no que vou dizer-te. Cada um de estes paes tem escrito o nome de uma das minhas filhas: Zara, Lydia e Cassima. Repete-os.
 — Zara, Lydia e Cassima, — repetiu o escravo.
 — Toma bem nota de estes nomes; — insistiu o Rei; — não te esqueças de elles, ou fica tudo prejudicado.
 — Não receie, meu senhor; — affirmou o escravo; — não esquecerei; Zara, Lydia, Cassima.
 Depois de mostrar os pães ao Christão, o Rei descreveu com elles na mão alguns signaes extranhos, e metteu-os em um alforge listrado de amarello e vermelho, que collocou aos hombros do escravo.
 Então explicou ao homem o que devia de fazer. Aguardaria a festa do S. João. Até lá viveria na sua extremecida cidade de Loulé, capital saudosa do seu reino perdido.
 Que do lado mais escuso das muralhas havia a porta secreta, por onde o Rei sahia do castello. De fóra estava occulta por um cannavial, de cannas altas como lanças, cerrado, e bravio; verdejavam na agua corrente, que uma fonte proxima, lhes atirava, sem cessar, para as raízes avidas de humidade e frescura.
 Na vespera de S. João, o homem chegar-se-hia a essa fonte do cannavial. Da bica vae cantando para o tanque o fio de agua limpida. Elle tomaria dos pães e lançava-os à agua. Como cada um dos paes correspondia ao nome de uma das suas filhas, elle, à medida que os atirava para o tanque, pronunciaria em voz alta o nome respectivo.
 — E agora vaes-te embora para a tua terra, — concluiu o Rei.
 Recommendou-lhe muito cuidado e prudencia na missão de que o incumbiu, — e que senão esquecesse do trabalho a fazer na vespera de S. João. Depois ensinou-o a preparar-se para, por artes magicas em que o Rei era exímio, ser transportado em um instante a Loulé. Devia de se collocar junto da bacia de prata, que o velho soberano tirára do arcaz e pousára no chão, mas collocar-se-hia de costas para ella; depois dava um salto para a rectaguarda, tendo o cuidado especial de não tocar com os pés na bacia, porque então seria o mesmo que mergulhar no oceano, e morria afogado. Se désse um salto limpo, logo se encontrava ás portas da cidade de Loulé.

IX

 Não esperou mais lições o bom do carpinteiro.
 Era tal a sua ansia de se vêr ao pé da mulher e dos filhos que deu um salto extraordinario, como talvez lhe não acontecesse, pelos melhores esforços, se o tentasse dar voluntariamente. Foi um assombro, quando, sem dar por isso e como se tivesse dado o mais simples passeio, se encontrou á entrada de Loulé.
 Apenas se viu naquellas paragens, dirigiu-se a casa, onde a familia o recebeu com alegria. Elle não contou nada, que se relacionasse com a aventura. Dava a entender que estivera a trabalhar em qualquer povoação distante, onde se demorára tanto.
 Foi-se a uma velha arca de madeira negra, e guardou lá dentro com muito cuidado os pães, que o Rei lhe déra. Para que lhes não tocassem, não fossem elles damnificar-se, recommendou à mulher e aos filhos que ninguem devia tocar nelles. Nada explicou e entregou-se ao trabalho, que o dia de S. João elle chegaria.
 A mulher do carpinteiro andava desconfiada. Aquella ausencia tão prolongada e mysteriosa, que o homem tivera, e o segredo esquisito dos pães, provocaram-lhe uma curiosidade insaciavel. Um dia pegou numa faca, foi-se à velha arca de madeira, e, tirando um dos pães, espetou-lhe a folha. Mas, — qual não foi o susto, quando o pão começou a escorrer sangue! Fez-se branca de pavor; escondeu o pão, mettendo-o outra vez na arca, e nada mais disse ao marido.
 Emfim, depois de muito esperar, chegou a noite de S. João. A’ meia noite, emquanto os outros cantavam, saltavam as fogueiras ou iam tomar o banho santo e as horvalhadas, o carpinteiro estava junto da fonte do cannavial, que lhe indicára o Rei; Levára o alforge listrado de vermelho e amarello. Tirou o primeiro dos pães; na fonte cantava, cahindo da bica, o fio de agua limpida, que gorgolejava ao bater na superficie do tanque; o carpinteiro lançou o pão para a agua espelhante, e disse: —Zara.
 Acabada de pronunciar a palavra, amedrontou-se o homem, porque da fonte se ergueu uma mulher luminosa, que subiu no ar e se desfez. Como lhe não aconteceu mal, dispôs-se a cumprir até final a palavra dada. Atirou o segundo pão, e pronunciou o nome da segunda filha do Rei: — Lydia. Formou-se outra nuvem como da primeira vez, subiu e desappareceu.
 Ao terceiro pão, exclamou o homem: — Cassima; mas nem sequer as aguas do tanque se moveram. Cassima, — bradou segunda vez o carpinteiro. Só à terceira chamada se agitaram as aguas, e uma linda menina surgiu aos olhos espantados do pobre homem, que estava muito longe de esperar aquelle desfecho. Ella choráva nervosamente; só depois de uns instantes, conseguindo sossegar os soluços, disse com voz abalada:
 — A tua mulher desgraçou-me. A sua curiosidade prendeu-me para sempre a este desterro.
 Ella contou ao homem o que a mulher d’elle tinha feito, para vêr o que os pães eram por dentro. Com uma faca procurára cortá-lo, e só desistiu ao vêr o sangue, que corria do pão. Com esse acto, ella cortára a perna direita de Cassima, que chorava de dôr, mas principalmente do desgosto de se não libertar do encanto.
 Para aqui ficarei a gemer, emquanto o mundo fôr mundo! — disse ella por fim, entre soluços, e, com um adeus da sua mão branca e fina, desappareceu.
 Foi grande o pesar do carpniteiro e não havia distracção, que lhe desviasse o pensamento; era só Cassima, a pobre princesa, a filha predilecta do Rei; e elle via-a na sua frente a lastimar-se entre soluços sentidos, que lhe chegavam ao coração, e não o deixavam dormir, nem lhe davam alegria.
 Até que uma noite, voltando a casa, depois de ter trabalhado o dia em um logarejo dos arredores de Loulé, atravessava os campos e foi arrebatado aos ares por forças extranhas. Refez-se do susto em que ia morrendo, ao ver-se descer e pousar serenamente na cidade de Tanger. Deante de elle estava o Rei. Cahiu de joelhos, com a cara no chão, o pobre carpinteiro. Estava louco de vergonha e de medo, pela falta que elle afinal não commettera, mas de que era responsavel por causa da curiosidade da mulher e talvez da falta de cuidado em fechar melhor os pães.
 — Perdão, perdão! — pedia elle entre lagrimas.
 — Ergue-te, homem, — disse-lhe o Rei com bondade, e ajudou-o a levantar-se.
 O homem ficou muito confuso perante o Rei, que lhe fallou assim:
 — Sei o que te succedeu e como cumpriste a tua palavra. Mas, a minha filha Cassima...
 — Senhor, perdoae-me, que não fui culpado!
 — Bem o sei, — atalhou o Rei; — a culpa tem-a tua mulher, que foi a desgraça de minha filha. A sua curiosidade perdeu-me Cassima, a gentil, a minha filha dilecta.
 O Rei disse-lhe que era justo, e que afinal o homem cumprira o que promettera, não tendo culpa do crime praticado pela mulher. As outras duas filhas, Zara e Lydia, lá estavam alegres e felizes, ao pé de seu pae, e livres do encanto. Cassima, essa ficará encantada por toda a eternidade dos seculos. E o pobre pae chorava de dor.
 — Sou justo, far-te hei justiça, — exclamou o Rei.
 Mandou-o embora, que voltasse para a terra, são e salvo, e seria rico das muitas riquezas que elle um dia lhe promettera, em paga do seu serviço. Só o aconselhava a que fosse usar essas riquezas com generosidade e honra.
 — Quanto a tua mulher, que seja menos curiosa e procure saber das coisas proprias, que não tem nada com as dos outros. Ensina-lhe a ser prudente. Conta-lhe, a desgraça que ella causou, e lhe sirva de lição. Vae-te, e sê homem de honra e pundonor.
 O consolo do pae era saber que a filha não estava só. Milhares de lindas Mouras a cercam, no encantamento florido, que é o Algarve. Ellas a acompanharão pelos seculos fóra.
 Quando sahiu, o carpinteiro christão de Loulé teve despedida affectuosa. Zara e Lydia levaram-no pela mão á escadaria do pateo mourisco, onde o sol brilhava alegremente. Ahi lhe disseram adeus, com os olhos marejados de lagrimas pela saudade da irmã. Pediram-lhe que fosse muitas vezes á fonte do cannavial, onde Cassima estava encantada e lhe dissesse que ellas oravam a Allah por sua irmã e lhe choravam o desterro eterno. Que ellas iriam um dia vê-la e fallar-lhe à beira da fonte.
 Sahiu. Na praia estava um barco embandeirado e cheio de flores. Levaram para elle o carpinteiro, que se via attonito no meio de tantas honras. O barco estava cheio de riquezas. Eram arcas e arcas de madeira fina, trabalhada de esculpturas e tauxiada de ouro e marfim; outras de couro lavrado; pequenos cofres de prata. Dentro havia o mais rico e bello thesouro, digno de um príncipe, que se vae casar.
 Partiu. O barco trouxe ao Algarve o carpinteiro, que nunca mais teve necessidades; foi bom, generoso, viveu feliz, emquanto que Cassima vivia no seu encanto eterno, de que elle a ia por vezes despertar, fallando-lhe ternamente como um namorado á beira da fonte de aguas limpidas.
 Pobre Cassima, prisioneira da Eternidade! Tão linda, tão estimada e tão infeliz!

Source
CHAVES, Luis Lendas de Portugal: Contos de Mouras Encantadas Lisbon, Livraria Universal, 1924 , p.63-97
Place of collection
Salir, LOULÉ, FARO
Narrative
When
20 Century, 20s
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography