APL 1564 A Moura Cássima

Era o governador do castelo de Loulé um homem dotado do dom da magia. Depois dos duros combates feridos em frente do castelo, reconheceu que a vila seria brevemente invadida pelos soldados de D. Paio. Na penúltima noite, quando todos descansavam, abriu uma das portas do castelo e, sem que o pressentissem, saiu acompanhado de suas filhas e encaminhou-se em direcção de uma fonte, a nascente da vila, aberta junto de um viçoso canavial.
 Alguns cristãos, moradores num aduar próximo, conheceram o governador e suas filhas, presenciaram então o governador a aproximar-se da fonte e entoar umas preces tristes e monótonas, um pouco abafadas pelos soluços das três filhas. A música do canto era pausada, piedosa e de uma doçura angelical. Em seguida afastou-se ele da fonte, sozinho, com a cabeça inclinada sobre o peito, extremamente comovido. Na noite seguinte desamparou o castelo, acompanhado de toda a sua gente, e foram todos embarcar em Quarteira para Tânger, na doce esperança de que voltariam brevemente, acompanhados de grandes forças armadas, a retomar o castelo e a vila.
 Desgraçadamente para o governador, as discórdias da sua raça tinham tomado maior incremento. A dinastia almuade estava em plena decadência, combatida pelos Benes Mennes, nova dinastia, que ameaçava substituir-lhe como aquela substituira a dos almoravides. Enquanto, pois, o governador não conseguia os reforços desejados, passeava, triste e pensativo, pelas praias de Tânger, de onde alongava os seus olhares saudosos em direcção da pequena fonte, asilo das suas filhas encantadas.
 Em certo dia chegaram a Tânger alguns cristãos, cativos dos mouros, e entre estes um carpinteiro de Loulé. Vendidos em praça pública foi o louletano adjudicado ao governador.
 Ao primeiro relancear de olhos conheceu o artista o velho governador, fingiu porém não o conhecer. Em certo dia aproximou-se o governador do carpinteiro e pediu-lhe notícias de Loulé.
 — Quando dali saí, falava-se muito do encantamento das filhas do governador do castelo, respondeu o carpinteiro.
 — Conheceste-o?
 — Não.
 — O que se dizia desse encantamento, e como souberam que essas desditosas estavam encantadas?
 — Alguns cristãos viram o governador sair do castelo com suas filhas, ouviram as tristes psalmodias e notaram que ele recolhera sozinho.
 — Era eu esse pai...
 E o velho pôs-se a chorar.
 — O meu amo e senhor dispõe de mim como lhe parecer.
 O governador, sem responder, recolheu-se ao seu quarto.
 No dia seguinte, ao sol posto, entrou no cubículo do cativo e disse:
 — Estás resolvido a prestas-me um grande serviço?
 — O meu amo e senhor manda e eu obedeço.
 — Preciso que vás ao Algarve desencantar as minhas filhas.
 — Por terra não sei o caminho, por mar nunca aprendi a guiar uma almadia ou uma zabra.
 — Acompanha-me ao meu quarto.
 O carpinteiro acompanhou o amo, e viu no quarto sobre um catre um par de alforges, e no meio do quarto um alguidar cheio de água.
 O governador fechou por dentro a porta, olhou fixamente o artista, e disse-lhe:
 — Antes de tudo quero que me jures pelo teu Nazareno cumprir à risca tudo que te ordenar.
 — Juro, respondeu o carpinteiro resolutamente.
 Então o governador tirou de uma caixa três pães e disse:
 — Em cada um destes pães está escrito o nome de cada uma das minhas filhas. Na véspera de S. João, à meia-noite, abeira-te da fonte onde estão encantadas, lança-lhe dentro este pão e diz: Zara; depois este e diz: Lídia; e afinal o terceiro: Cássima. Ditas estas palavras retira-te para tua casa.
 O carpinteiro examinou os pães e seus respectivos sinais, marcados pelo mouro, e em seguida este meteu os pães nos alforges e pó-los sobre ombros do artista.
 — O mais penoso é o que segue, disse o governador com voz trémula.
 — O que é? — perguntou o carpinteiro a tremer.
 — A jornada.
 — Daqui ao Algarve deve ser muito longe.
 — Vês aquele alguidar cheio de água?
 —Vejo.
 — Para chegar ao Algarve basta-se somente a prudência acompanhada de diligência.
 O carpinteiro não respondeu.
 — Coloca-te daquele lado do alguidar e dá um salto para trás. Se o saltares de um pulo, encontrar-te-ás imediatamente às portas da tua vila; se o não saltares, cairás afogado no mar.
Se as saudades dos filhos e esposa o não atormentassem cruelmente, o carpinteiro pediria que outrem, mais ousado, desempenhasse tal missão, mas era pai e esposo, e por isso respondeu imediatamente:
 — Estou pronto; serei prudente e diligente.
 — És um homem, disse o mouro.
 E o carpinteiro aproximou-se do alguidar com os alforges às costas e mediu com os olhos a sua largura.
 — Espera um pouco. É necessário que o grande astro se encontre na devida conjunção. Faltam apenas dois minutos. E agora te digo que se desencantares as minhas filhas receberás a satisfação condigna por intermédio de muitas vias.
 — Andarei pelo ar muito tempo? — perguntou o carpinteiro visivelmente incomodado.
 — Em breve o saberás.
 O artista aproximou-se mais do alguidar e segurou com energia os alforges e os pães.
 — Salta! ordenou o governador numa voz cava e acentuada, que perfeitamente imitava o estertor de um moribundo, nos últimos momentos de agonia.
 O carpinteiro deu um salto e desapareceu.
 Em seguida o velho governador dirigiu-se para a Mesquita e foi ajoelhar em frente do nicho que existe em todas as Mesquitas e que corresponde à porta do templo de Meca, chamado alquella.
 Conservou-se ali por muito tempo em profundo recolhimento de espírito.
 Os mouros passavam-lhe ao lado e diziam entre si, com profundo respeito:
 — Está em oração o Çala ben Çala (o “Justo dos Justos”).
 Quando o governador se afastou do lugar, todos se curvavam à sua passagem. É que o governador era muito respeitado pelo seu valor, pela sua fé e pela sua infelicidade.
 E, entretanto, o carpinteiro atravessava como uma águia os ares e saltava os mares, chegando às portas da vila ao romper da manhã.
 Sentou-se a tomar fôlego, esperando que fossem abertas as portas, e não sei se chegou a penitencias-se de ter empreendido tão grande travessia por um processo menos católico.
 Rompeu o sol no horizonte! Como é belo o nascer do sol na nossa província! Que encantos lhe não encontraria o pobre artista com os braços livres das algemas do cativeiro!...
 Encaminhou-se para uma casa e bateu à porta. Quando lhe apareceu a mulher e ambos se abraçaram num mútuo amplexo, estavam já cercados de muitas pessoas da vila, ávidas de notícias.
 O carpinteiro, porém, depois de abraçar a mulher e beijar os filhos, subiu ao sotão e foi guardar os três pães dentro de uma arca usada, onde estavam as velhas alfaias, que de nada serviam.
 Nesse dia fartou-se de mentir para responder às perguntas impertinentes dos seus patrícios.
 É escusado dizer que nas suas respostas fez sempre por sobressair a crueldade dos mouros, que se entretinham dizia, em cortar aos cativos a pele das costas com uma faca.
E não andou mal, porque se ele dissesse que tinha atravessado os ares por intermédio dos sortilégios, talvez que uma fogueira lhe queimasse as carnes e os ossos.

**

 Nas tardes dos domingos e dias santificados, saía o carpinteiro da vila em passeio à fonte e ali se conservava, horas inteiras, com os olhos fixos na água da fonte, esperando, a cada momento, lobrigar lá no fundo alguma das desditosas encantadas. Quando começava a escurecer, voltava para casa, e ia observar os três pães escondidos na arca.
 Tantas vezes abriu a arca que a esposa, na ausência do marido, foi ver o que a arca continha. Viu os três pães e ficou surpreendida. Conteriam os pães algum dinheiro? ou algum segredo do esposo apaixonado? Resolveu pedir informações ao marido.
 — Não lhes toques, respondeu o marido visivelmente incomodado, quando a mulher o interrogou.
 Esta resposta simples e formal maior desconfiança despertou na mulher. Em uma tarde de domingo, na ocasião em que o marido, debruçado na fonte, espreitava as mouras, subiu a mulher ao sotão, abriu a arca e deu, com uma faca, grande golpe num dos pães. Imediatamente começou a sair sangue pela cutilada. Amedrontada, a mulher curiosa escondeu o pão entre os outros e fechou a arca à pressa.
 Nesse mesmo momento o marido, debruçado na fonte, ouviu distintamente um enorme grito saído do interior e da parte mais funda das águas. Sentiu arrepiarem-se-lhe os cabelos e não soube explicar aquele fenómeno-
 A mulher nada contou ao marido.
 Chegou afinal a noite da véspera de S. João, noite igualmente festejada por mouros e cristãos. Apenas começou a escurecer, dirigiu-se o artista para a fonte, levando nos alforges os três pães.
 Estava límpida a atmosfera e a lua percorria o horizonte no seu trono de marfim.
 O carpinteiro sentou-se ao lado da fonte e esperou que desse a meia noite. Logo que deu a hora marcada, tirou dos alforges um pão, lançou-o dentro da fonte, e disse em voz alta:
 —Zara!
 Ergueu-se imediatamente do fundo da fonte um globo de espuma, tomando a forma de um véu branco de rainha em dia de núpcias, subiu, subiu, e desapareceu com a velocidade de um relâmpago.
 — Lídia! exclamou o carpinteiro no mesmo tom de voz, lançando o pão à fonte.
Repetiu-se o mesmo fenómeno.
 — Cássima! disse no mesmo tom e pela mesma forma.
 Soou um grito, repassado de dor, e as águas permaneceram quietas.
 — Cássima! repetiu o artista, num tom de voz forte e enérgico.
 Então as águas da fonte marulharam estrepitosamente entre uns queixumes de pessoa aflita, e quase ao mesmo tempo viu o carpinteiro segura pelas duas mãos ao gargalo da fonte, uma formosíssima mulher.
 — O que significa isto? perguntou o carpinteiro atemorizado.
 — Significa que estou condenada a passar séculos e séculos nesta fonte, respondeu a moura soluçando.
 — E de quem é a culpa?
 — De tua mulher, que me cortou de um golpe a perna direita.
 — Minha mulher… naturalmente não teve a consciência do mal que fez.
 — Nem a culpo. Os fados foram-me adversos. Foi tua mulher o instrumento de que se serviram contra mim. Se tua mulher não fosse curiosa ou ciosa...
 — E todavia está inocente, apressou-se o marido...
 — Bem sei. Não lhe quero mal. Eu sei que dentro de dias ela há-de sofrer as dores da maternidade, e para te provar que não lhe quem mal, ofereço-te este cinto com o qual a cingirás no momento das dores.
 E segurando-se com uma das mãos aos bordos da fonte, com a outra ofereceu ao carpinteiro um riquíssimo cinto bordado a ouro e coberto de pedras preciosas.
 O carpinteiro aceitou a valiosa oferta, e a infeliz Cássima desceu ao fundo da fonte, dando dois angustiados gemidos que até cortavam os mais duros corações.
 Ficou o carpinteiro extremamente penalizado com a triste sorte da filha mais nova do governador, mas nem por isso deixou de perder a ocasião de experimentar o brilhante efeito que a lua produziria reflectindo os seus raios nas pedras preciosas do cinto. Aproximou-se, pois, do tronco secular de uma carvalheira gigantesca, cingiu-o com o cinto, indo postar-se a certa distância para melhor observar os efeitos da reflexão.
 Fenómeno espantoso! Apenas acabou de cingir o tronco, ouviu-se como um grande ronco saído das entranhas da terra, e a árvore, arremessada ao ar com todas as raízes e ramos, subiu, subiu, até desaparecer para sempre.
 O carpinteiro fez o sinal da cruz e dirigiu-se de corrida para casa.
Esperou o carpinteiro durante muitas semanas a retribuição que lhe fora prometida pelo pai das mouras; debalde, porém.
 Passados alguns meses seguia o carpinteiro o largo da praça, em uma tarde de chuva, viu no alto, em frente do actual prédio da Câmara, uma mulher encostada à porta, do lado esquerdo, que lhe acenava. Não a conheceu, e aproximou-se-lhe saltando a valeta que ia cheia de água. Imediatamente sentiu-se arremessado ao ar, como se fora arrastado num tufão, e foi cair, sem perigo, na praça de Tânger. Julgou-se perdido quando se viu agarrado por diversos mouros que o conheciam e o levaram à presença do velho governador.
 Só então o carpinteiro se recordou das feições de Cássima e conheceu ser ela que lhe acenara na praça!
 O velho governador, logo que viu o carpinteiro, empalideceu horrorosamente! Despediu os mouros e ficou só com o artista.
 — O que fizeste da minha querida Cássima, infeliz?
 — Não fui culpado, senhor! respondeu o carpinteiro.
 — Bem sei, bem sei! Os fados foram-lhe contrários. Tinha de ser, tudo estava escrito. Zara e Lídia casadas, e na opulência, ao passo que a minha póbre Cássima passará eternamente os seus dias dentro dos apertados âmbitos duma fonte! Felizmente, ainda assim, não se encontra lá só.
 Esta resposta esclareceu um ponto em que o carpinteiro andava intrigado. Ele sabia perfeitamente que só Cássima ficara encantada, e todavia constantemente ouvia dizer às suas vizinhas que diversos mouros existiam encantados nas proximidades de Loulé.
 — Então, disse o louletano, há mais desditosos encantados em Loulé?
 O governador, sem responder directamente ao carpinteiro, entrou como em êxtase e disse profeticamente:
 — Enquanto Al-Faghar existir, nele palpitará um mundo de corações sarracenos.
 Disse estas palavras e exclamou:
 — Sai da minha presença!
 Para onde ir, senhor?! Sabeis que os meus pobres filhos vivem lá sem mim, e não têm valores com que me resgatar. As estradas estão povoadas de facinoras, nem sei o caminho.., sou extremamente pobre...
 — Tens razão. Contraí contigo um compromisso, e não será um
velho crente que faltará à sua promessa.
 Nessa noite, por ordem do governador, embarcou o nosso carpinteiro num barco veneziano, que o levou directamente a Faro. Conta-se que foram tão importantes as riquezas que o pai das mouras lhe oferecera que ele chegara a comprar todo aquele terreno ocupado pela fonte e hortas circunvizirihas. Outros afirmam que desde que a carvalheira foi arrancada pela raiz nunca mais ninguém viu o carpinteiro junto da fonte.
 Seja o que for, o que é certo e se acha confirmado pela tradição constante de centenares de anos, é que a moura Cássima ainda hoje, nas noites frígidas do inverno, ou nas amenas de verão, pranteia tristemente o seu encantamento; e diz-se também que são muitas as encantadas por aqueles arredores.

Source
OLIVEIRA, Francisco Xavier d'Ataíde As Mouras Encantadas e os Encantamentos do Algarve Loule, Notícias de Loulé, 1996 [1898] , p.61-70
Place of collection
LOULÉ, FARO
Narrative
When
8 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
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Bibliography